Com R$ 4,75 bilhões em saldo positivo na balança comercial com a Argentina, alguns segmentos do setor produtivo gaúcho demonstram preocupação com o resultado das eleições no país vizinho. É que antes de confirmar a vitória nas urnas, o novo presidente, Javier Milei, reiterou em diversas ocasiões, durante a campanha, que pretende, sim, retirar a nação que comandará do Mercosul.
De imediato, caso isso ocorra, significaria que nos produtos vendidos ou comprados pelo Brasil – atualmente isentos em razão do acordo econômico – passaria a incidir uma taxa de 35% com potencial de sobra para elevar o custo dos produtos brasileiros, prejudicar a competitividade das exportações setoriais, à exemplo da calçadista, e desmontar cadeias produtivas, como a automobilística e a de máquinas e equipamentos, cuja troca de autopeças e componentes entre ambos os mercados dependem as indústrias em específico.
Do lado de cá da fronteira, o país enfrentaria percalços de abastecimento e preços em insumos para a produção que iriam desde o pão francês (pois o trigo é o quinto principal item da pauta comercial com a Argentina, com US$ 650 milhões em importações), o óleo bruto de petróleo (com US$ 786,4 milhões adquiridos) e até a cerveja, uma vez que o malte e o lúpulo também ficam entre os 10 primeiros itens da pauta de importações brasileiras junto ao país vizinho, com quase meio bilhão de dólares consumidos até outubro. Os dados são do portal Comex Stat, do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC).
Na outra porteira da duana, os problemas se repetem para a economia brasileira e gaúcha. Com os hermanos fora do Mercosul, a sobretaxa aos produtos nacionais faria com que a indústria calçadista, por exemplo, que tem na Argentina o seu principal destino comercial, perdesse ainda mais participação para os produtos chineses.
A atividade é intensiva em mão de obra (emprega 295,6 mil pessoas no país, 87,38 mil no Estado) e exportadora por natureza. Conforme explica o presidente-executivo da Abicalçados, Haroldo Ferreira, um freio da porteira para fora, significaria também menos produção no chão das fábricas.
Resultado preocupa os calçadistas
O tom agressivo adotado ao longo da campanha por Javier Milei e com certa hostilidade ao Brasil em razão de divergências ideológicas com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva é motivo de preocupação para os calçadistas. No primeiro semestre do ano, o setor já havia sofrido com medidas implantadas pelo ministro da Economia da Argentina, Sergio Massa, derrotado por Milei na eleição deste domingo (19).
Massa foi um dos cérebros por trás da criação de um pacote de incentivos ao consumo interno. As medidas, além de priorizarem produtos locais, impuseram licenças não-automáticas nas zonas de fronteira.
A meta nada mais era do que retardar o ingresso de itens estrangeiros, a fim de ganhar tempo para contornar a escassez de reservas internacionais em dólares necessárias para arcar com os pagamentos. Esse é um dos componentes da crise na qual os vizinhos não param de afundar.
O resultado: filas intermináveis nas aduanas, caminhões carregados de mercadorias brasileiras em espera de até três meses e atraso de pagamentos que superam prazos de 180 dias. Os sapatos brasileiros – a maior parte gaúchos – já responderam por quase a metade (48%) daquele mercado, mas hoje caminham para angariar fatia correspondente a pouco mais de um terço de participação (37%).
Entre janeiro e outubro, comenta o presidente-executivo da Abicalçados, Haroldo Ferreira, a Argentina importou 12,9 milhões de pares do Brasil por US$ 202,9 milhões. Significa um resultado 10% inferior em volume e 28,7% superior em receita na relação com o mesmo período do ano passado, mas em razão de componentes inflacionários.
— Agora, tem muitas coisas que nos preocupam. Sabe-se que as colocações de uma campanha são diferentes da postura de um presidente e depende do que ele (Milei) conseguirá fazer. Quanto a uma possível ruptura com o Brasil, é algo difícil de acreditar porque ambos dependem um do outro — comenta Ferreira.
Indústria vê dificuldade em cumprir promessa
Basta passar os olhos pela pauta comercial de Brasil e Argentina para perceber o quão interligadas as duas economias estão. E os pontos de conexão ocorrem justamente em indústria de grande relevância para o Rio Grande do Sul.
Um exemplo: até outubro, o país comprou US$ 2 bilhões em veículos com motor diesel para carga e vendeu US$ 255 milhões em partes e acessórios de carrocerias e US$ 232 milhões em motores para veículos. Significa que autopeças nacionais abasteceram montadoras argentinas.
Outro: o Brasil exportou US$ 217,5 milhões em tubos utilizados em oleodutos ou gasodutos importou US$ 786,4 milhões em óleo bruto de petróleo. Para fechar o ciclo no segmento de energia, o país também destinou US$ 457 milhões em energia elétrica.
O presidente da Fiergs e vice-presidente da CNI, Gilberto Petry, ao destacar que a Argentina é a principal origem dos das importações gaúchas (US$ 1,2 bilhão até outubro) e o terceiro maior destino das exportações (US$ 2,7 bilhões), resume:
— O novo presidente pode falar o que quiser, mas brigar com o Brasil não seria algo viável pela dependência das cadeias de produção dos dois países. É algo semelhante ao relacionamento que Bolsonaro tinha com Alberto Fernández, mas antes Milei terá uma série de problemas pra reconduzir o país à estabilidade.
“Pior que está não fica”, diz presidente do sindicato de máquinas equipamentos
No primeiro semestre do ano a Argentina perdeu o posto de principal destino das vendas externas nacionais de máquinas e equipamentos agrícolas para o Paraguai. Em 2017, chegou a importar US$ 273,7 milhões do Brasil. Em 2022, não atingiu sequer US$ 200 milhões.
Em 2023, o desempenho segue em baixa, conforme o presidente do Sindicato das Indústrias de Máquinas e Implementos Agrícolas do Estado (Simers), Cláudio Bier. No Primeiro semestre houve casos de máquinas paradas por mais de dois meses nas fronteiras secas no aguardo dos pagamentos argentinos.
O problema teve peso maior para o RS, que responde por 62% da fabricação desses itens, mas representa não mais do 11% do mercado doméstico.
— A Argentina já comprou em média 10% das máquinas produzidas no Brasil. Durante a campanha me assustei com o tom agressivo de Javier Milei, mas durante o discurso da vitória percebe-se que é alguém que se poderá vir a conversar, pois a postura mudou. Do outro lado, havia um dos responsáveis pela situação (Sergio Massa). Pior do que está não fica.
Os riscos e as expectativas
- Mesmo que a própria imprensa daquele país considere pouco provável, a promessa de retirar a Argentina do Mercosul preocupa o setor produtivo brasileiro.
- Isso acontece porque, na prática, significaria a incidência de uma taxa de 35% sobre os produtos nacionais vendidos ao país vizinho, hoje isentos por contas do acordo vigente no bloco.
- Ainda que o futuro presidente argentino tenha moderado o tom e dado amostras de que primará por um liberalismo convicto, o que pressupõe zerar tarifas de importação ou praticar taxas mais baixas, a exemplo do que faz o Chile desde o regime Pinochet, é a proteção comercial do acordo do Mercosul que garante diferencial competitivo de preços.
- Vale lembrar que, mesmo em crise, a Argentina é o segundo maior parceiro comercial do Rio Grande do Sul e o terceiro do Brasil.