Em 2005, no primeiro ano em que recebeu os R$ 80 mensais, transferidos pelo programa Bolsa Família, Simone Nunes Vieira, 41, morava na localidade de Palmeira, no interior do município de Camaquã, com o marido e o primeiro dos três filhos, o Igor, que sequer havia completado um ano de vida. A cerca de 100 quilômetros de Guaíba, onde hoje mora em uma casa própria, conquistada muito tempo depois, ela lembra, com certo distanciamento, do período em que a renda da mulher – mãe de duas meninas e um menino – dependia unicamente do que conseguia arrecadar durante os meses da safra de fumo.
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Quando passou a contar com o recurso fixo, ainda que baixo, estabeleceu uma rotina. Todo dia 5 do mês, ao sacar o dinheiro, comprava a “bolachinha” preferida das crianças. Foi a maneira encontrada por Simone para fazer com que elas entendessem, desde cedo, a importância daquele valor, não pela quantia, mas pela certeza de que estaria lá na data acordada, conta.
— Era pouquinho, mas dava para planejar quando a gente ia poder comprar o gás, pagar alguma conta e dar um agrado para os pequenos — resume.
Ao contrário do que indica o senso comum, explica a professora e coordenadora do curso de Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Marilia Patta Ramos, o foco prioritário do programa é justamente o de alterar as oportunidades futuras dos dependentes criados nos núcleos familiares auxiliados pelas políticas públicas.
É o que se denomina “mobilidade social”, ou seja, quando os filhos superaram o nível de formação escolar ou a situação econômica dos pais – num movimento bastante desejável, não apenas para alterar o rumo de histórias pessoais, como a de Simone, mas também para elevar o índice de qualificação do mercado de trabalho, por consequência, aquecer a produção do país.
Isso é evidenciado, argumenta a professora, por duas condicionantes, sem as quais o benefício deixaria de ser endereçado aos titulares. Trata-se da vacinação e da frequência escolar dos dependentes. Quase 20 anos depois da implantação do Bolsa Família (criado em 2003), um estudo do Instituto de Mobilidade Social (IMDS) faz emergir alguns dos resultados.
No Brasil, cerca de 5,2 milhões de jovens e adultos remanescentes das famílias beneficiárias foram encontrados no mercado formal de trabalho. Significa que 44% desses “filhos do Bolsa Família” (com idade de 7 a 16 anos, em 2005), passaram a frequentar a Relação Anual de Informações Sociais (Rais) – os dados oficiais do emprego com carteira assinada, produzidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – entre 2015 e 2019, isto é, ao ingressarem na idade laboral.
No Rio Grande do Sul, a efetividade é maior: chega a 58,1% dos “filhos gaúchos do Bolsa Família”, em igual período. Entre eles, está Igor Nunes Vieira – o mais velho dos descendentes de Simone.
No começo da formação escolar, o garoto demonstrava apreensão em dias chuva, pois correria o risco de não chegar em tempo de assistir a aula e, por consequência, perder a regularidade exigida pelo Bolsa Família, relata a mãe. Apesar dos receios, aos 16 anos, concluiu o Ensino Médio e foi contratado por uma empresa de Guaíba. E, assim como ele, 56% daquelas crianças, frutos dos núcleos familiares do Bolsa Família no RS, em 2005, conseguiram finalizar os estudos.
Na semana passada, ao mostrar, com o orgulho estampado no rosto, a foto do herdeiro, de farda militar, a mãe relembrava de sua própria trajetória. E ela sabe: daqui a alguns dias será a vez de Stefani, 17 e de Ituane, 12. O ciclo de transformação está garantido, afirma Simone.
Emancipação entre as gerações
Uma das críticas ao Bolsa Família, desde os anos iniciais, aponta a coordenadora de Políticas Públicas da UFRGS, é a de que o beneficiário direto – no geral, mães solo, na faixa de 30 a 40 anos, sem qualificação profissional – dificilmente terá uma oportunidade diferente. Só que a pesquisa dá indícios de que os filhos, sim, têm.
— O programa é extremamente importante porque trata com famílias. Olhando para os números, me parece que esses jovens conseguiram entrar no mercado de trabalho, diferentemente, dos pais que não conseguiriam ficar sem o benéfico
Nesse contexto, a professora afirma que há “emancipação indireta” pelos filhos. Segundo ela, os estigmas escondem o desconhecimento das distintas realidades existentes no Estado e no país:
— O que não se percebe é que há pessoas tão sem qualificação que é difícil resgatar a falta de inserção no mercado de trabalho e da formação educacional. Resta o impacto intergeracional. Na medida em que não somos meritocráticos, algumas crianças já saem da barriga da mãe com aulas de informática e acesso à tecnologia, outras com problemas de cognição, porque a mãe não se alimentou bem durante a gravidez. É um Brasil muito desigual e precisamos de políticas de Estado que favoreçam esses filhos do Bolsa Família.
O professor de Sociologia do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais e coordenador do Data Social da Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS), André Salata acrescenta que esse é o objetivo de um programa de transferência de renda, como o Bolsa Família: gerar um ciclo positivo, capaz de alterar trajetórias pessoais e sociais.
Ele explica: o benefício em si mesmo, por mais que seja relativamente pequeno, permite que as famílias que o recebem vislumbrem possibilidades, antes, inacessíveis. Outro ponto em destaque: a pesquisa evidencia a dependência entre “trajetória social” e “origem familiar” com as “oportunidades de vida”. E, para o economista, o Bolsa Família se insere como uma alternativa para quebrar essa lógica.
— É como se fosse um efeito colateral, porque permite traçar a estratégia de erradicação da pobreza por meio da formação de capital humano. O programa melhora, ainda que de maneira nem tão significativa, o nível socioeconômico. Por isso, é esperado que que haja esse reflexo na juventude e na vida adulta daquelas crianças criadas nas famílias beneficiadas — resume.