O avanço galopante da globalização, fenômeno que derrubou fronteiras culturais e econômicas ao longo das últimas décadas, poderá acabar como mais uma vítima da guerra na Ucrânia.
O conflito se soma a outros episódios recentes como a crise mundial de 2008, o Brexit e a eclosão da pandemia para minar o livre fluxo de pessoas, capitais, mercadorias e informações que ajudou a moldar o mundo contemporâneo.
O esforço de governantes para reduzir a dependência externa em um cenário de falta de produtos em razão dos mísseis e do coronavírus coloca a globalização em xeque e aumenta o risco de retrocessos que resultariam em um mundo mais fechado, com inflação mais alta e menos pujança econômica.
— A covid e a guerra atrapalham o fluxo de comércio internacional, mas a dúvida é: vamos voltar a viver produzindo domesticamente, com menos qualidade e mais caro, ou entender que é uma situação passageira e seguir produzindo apenas o que conseguimos fazer com boa qualidade e baixo custo, e importando o restante? — questiona o economista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Marcelo Portugal.
As respostas oficiais a essa pergunta estão voltando a colocar a política acima da economia – a exemplo do que ocorreu no período entre as duas guerras mundiais, quando a participação do comércio internacional no PIB dos países despencou. Em 1913, na véspera do primeiro conflito global, 14% da riqueza planetária tinham origem no comércio exterior. Esse patamar despencou para 4% ao final da Segunda Guerra e só voltou a superar o nível do começo do século no final dos anos 1970. O fim da Guerra Fria fez essa cifra subir ainda mais rapidamente e chegar a um quarto da economia global, conforme um estudo que mediu esses indicadores até 2014 (veja o gráfico abaixo).
Agora, ao comprometer o acesso a matérias-primas, combustíveis e bens industrializados, a pandemia e o cerco a Kiev multiplicaram as declarações de líderes mundiais em favor de uma menor dependência das cadeias globais de produção que insuflaram o desenvolvimento no pós-guerra.
Em um evento virtual sobre mineração, em fevereiro, o presidente americano, Joe Biden, ressaltou a importância de investir em cadeias próprias de produção e energia, deixando de contar com importações:
— Vimos o que ocorre quando ficamos dependentes de outros países para bens essenciais como chips de computador. A China passou anos monopolizando o mercado de insumos que alimentam as tecnologias das quais dependemos. Por isso, me comprometi a criar uma cadeia de energia limpa com o selo “Feito na América”, que significa usar produtos, partes, materiais e minerais que estão aqui nos Estados Unidos.
Poucas semanas depois, em março, o líder chinês, Xi Jinping, discursou no mesmo tom em um encontro com consultores governamentais de seu país:
— As tigelas chinesas de arroz devem ser enchidas principalmente com grãos chineses. O problema da alimentação é tão importante quanto o da industrialização, e não devemos depender do mercado internacional.
Países europeus agora se mobilizam para depender menos da energia estrangeira, e nações como o Brasil colocam em marcha planos para ampliar a autossuficiência de produtos como fertilizantes. Diante disso, em um comentário feito semana passada na CNN, o jornalista e cientista político Fareed Zakaria declarou:
— Podemos estar vendo uma reversão de 30 anos de globalização. Medidas que colocam segurança e autossuficiência acima de eficiência certamente vão elevar preços em todos os lugares, enquanto países buscam resiliência e evitam depender excessivamente de outros países.
Rumos da interdependência ainda são incertos
Há dúvidas, entre especialistas em economia e relações internacionais, sobre quantos passos a globalização poderá retroceder devido à eclosão de fenômenos nacionalistas e ao medo de desabastecimento.
— Todos esses episódios recentes colocaram em xeque a interdependência entre os países que a globalização pressupõe. Ainda não está claro como serão os desdobramentos, mas não acho que chegamos a um ponto que marque uma inflexão muito grande. Há questões estruturais difíceis de ignorar, como a busca global por mão de obra mais barata — analisa o professor de economia da Fundação Getulio Vargas (FGV) Mauro Rochlin.
Economista e professor de Relações Internacionais da Universidade do Vale do Itajaí (Univali), Daniel da Cunda Corrêa da Silva avalia que o mundo vive um período de “refluxo” da globalização, mas que ainda não aponta para uma clara reversão:
— Estamos em momento de refluxo com possível virada para um controle mais fechado (das economias). Mas o próprio ciclo de produção econômica tem limites que são intransponíveis em razão dos passos que a globalização já deu. Essa possível reversão teria limites.
Para reverter esse processo, seria preciso, por exemplo, fechar fábricas para concentrar a produção apenas em um país e impor tarifas generalizadas de importação, entre uma série de outras medidas que parecem pouco prováveis até o momento. Daniel da Silva acredita que uma das possibilidades é se observar não um recuo em larga escala da interconexão mundial, mas a multiplicação de obstáculos pontuais:
— Os governos, cobrados para restituir os padrões de vida anteriores à crise de 2008, podem usar políticas econômicas mais agressivas. Entre elas, barreiras não tarifárias como embargo ao embarque de determinados produtos sob alegação de problemas sanitários. A França, por exemplo, passou a impor restrições à entrada de produtos brasileiros e a demonstrar desinteresse no acordo da União Europeia com o Mercosul alegando o descumprimento de compromissos ambientais do governo brasileiro. Demos esse pretexto de mão beijada para eles.
Estudo aponta resiliência da globalização diante da pandemia
Estudos recentes indicam que a globalização estagnou nos últimos anos, mas pode ser mais resiliente a obstáculos como pestes e guerras do que se imagina. Indicador desenvolvido pela Universidade de Nova York e pela empresa DHL e atualizado anualmente, o Índice de Conectividade Global mostra que o primeiro ano da pandemia de fato impôs freios à cooperação internacional, mas não provocou uma queda acentuada — com exceção do fluxo de pessoas através das fronteiras, consequência principalmente das barreiras sanitárias. Como o levantamento só abrange até 2020, ainda não é possível mensurar o impacto do segundo ano pandêmico ou da invasão da Ucrânia.
O índice é um número calculado com base em cerca de 3,5 milhões de dados de todos os países em quatro pilares fundamentais: fluxos de pessoas, de capitais e de informação, além do nível de comércio internacional. O número foi calibrado para cem para indicar o nível de globalização que havia em 2001 — a partir daí, cifras acima de cem indicam uma maior cooperação entre os países em comparação a esse ano, e números abaixo apontam para uma queda na conectividade em relação a esse marco.
O indicador variou apenas um ponto para baixo entre 2019 e 2020, de 125 para 124 (veja gráfico abaixo) — embora esteja praticamente estagnado desde 2018. Uma das razões para o desempenho razoável diante do coronavírus foi a resistência do comércio internacional: despencou entre abril e maio de 2020, mas em novembro já havia voltado a superar o patamar pré-covid.
Investidores retiraram capital de mercados emergentes em níveis recorde logo no começo da disseminação do vírus, mas ainda no primeiro semestre já haviam retomado antigos patamares. O fluxo de informações, graças à internet, não sofreu abalos — somente o fluxo de viajantes despencou a níveis superiores a 80%.
Para a globalização sofrer um revés de fato, todas essas dimensões teriam de dar uma guinada em sentido contrário.
— Dos anos 1980 para cá houve um aumento muito forte da globalização em todas as dimensões: econômica, cultural, migratória. Antigamente, só os ricos viajavam para o Exterior, e o nosso cartão de crédito não valia fora do país. Vamos voltar a viver naquele mundo? Se a guerra na Ucrânia não se espalhar para a Europa inteira, acho que vamos ver apenas um soluço na globalização, e ela voltará a crescer em seguida — avalia o professor de economia da UFRGS Marcelo Portugal.
Possíveis impactos de um mundo menos integrado
Preços mais caros
A lógica da globalização é cada país contribuir vendendo ou fazendo o que tem de melhor – com mais eficiência e custo menor. Por isso, as chamadas cadeias globais de produção tendem a produzir bens melhores e mais baratos (ainda que, muitas vezes, à custa de mão de obra barata). Romper essas cadeias em favor de produções predominante nacionais levaria a produtos mais caros, com mais inflação, e possível menor qualidade.
Prejuízos a exportadores
Quem depende do comércio exterior enfrentaria maiores dificuldades para encontrar mercado para seus produtos — o que poderia incluir setores da economia brasileira como mineração e agropecuária, por exemplo.
Mais produção local
Para não depender de outros países, seria preciso aumentar a produção de matérias-primas, muitas vezes por meio do estímulo à mineração, por exemplo, como no caso dos fertilizantes, e estimular a industrialização — mas correndo o risco de produzir bens com menos qualidade e mais caros. Nesse caso, uma maior segurança de abastecimento seria garantida por meio de um custo mais elevado.
Mais gastos militares
Uma das consequências mais imediatas da invasão da Ucrânia deverá ser a multiplicação de gastos com defesa, incluindo países que tradicionalmente não investiam tanto nessa área, como Canadá ou Alemanha. Isso pode retirar recursos de outras áreas importantes ou reduzir a capacidade de importação de outros tipos de produtos.
Barreiras à migração
Por trás de episódios como o Brexit está uma busca crescente, por parte de alguns países, de barreiras contra a migração — sob a alegação de que é preciso evitar a chegada de estrangeiros que disputem vagas de emprego com os trabalhadores locais. Esse fenômeno é apontado como uma das consequências da crise econômica de 2008, que aumentou a pressão sobre os governos para restituir o padrão de vida anterior ao colapso.
Menos fluxo de informação
Até o momento, o indicador de fluxo de informação calculado pela Universidade de Nova York e pela empresa DHL não aponta qualquer revés na troca de informações em nível global principalmente com auxílio dos meios digitais. Mas um mundo menos globalizado pode favorecer ações como o bloqueio de determinadas redes sociais, por exemplo, o que já ocorre no contexto da invasão da Ucrânia — o governo russo baniu Facebook e Instagram.