A procura por inovação no mundo dos negócios não é uma novidade. Mas o ingresso de empresas gigantes e tradicionais do Rio Grande do Sul em ecossistemas setoriais tem sido um fator determinante para acelerar parcerias estratégicas, aquisições e fomento de startups para o desenvolvimento de novos produtos e processos digitais.
A transformação em curso é visível nos números de M&As (fusões e aquisições, na sigla em inglês), medidos pela Consultoria Distrito, em parceria com a Associação Brasileira de Startups (ABS). No Rio Grande do Sul, foram 14 operações, entre janeiro de 2020 e julho de 2021. Juntas, elas somam US$ 108,7 milhões.
Do total, US$ 91,5 milhões foram consolidados apenas no primeiro semestre deste ano. Na comparação com 2018, por exemplo, quando foram fechados US$ 29,9 milhões em M&As, o volume envolvido saltou 206%.
Esse é só um dos indicadores capazes de mensurar a velocidade das mudanças. Além dos negócios propriamente ditos, há um processo contínuo de busca por soluções fora do ambiente das empresas tradicionais. Conforme explica o secretário estadual de Inovação, Ciência e Tecnologia, Luís Lamb, isso toma forma mais acentuada no Estado a partir de 2019, com iniciativas como o Pacto Alegre.
— Grandes empresas buscam esse posicionamento, porque notaram que não se trata mais de uma questão de diferencial competitivo, e sim vital para a sobrevivência do negócio — comenta.
Descentralização
O movimento está ligado ao conceito de inovação aberta (OI, na sigla em inglês). Ou seja, a descentralização do modelo de negócios como alternativa para construir ou perceber que, na grande maioria das vezes, a solução de inovação que vem de fora faz muito mais sentido do que algo que poderia levar anos e demandar polpudos investimentos para ser gerado internamente.
O presidente da Associação Gaúcha de Startups (AGS), Wagner Bergozza, explica que a inovação aberta se alinha ao desejo de inovar das grandes empresas. Neste contexto, a pandemia serviu de catalizador, forçou a digitalização, e o que era remoto virou obrigatório. Segundo ele, as grandes corporações se aproximaram ainda mais dos ecossistemas de startups.
Giovanna Fiorini, gerente de Inovação Aberta na rede de empreendedores Endeavor, avalia que, diante de um cenário de incertezas e muita complexidade, como o atual, as marcas mais tradicionais foram obrigadas a rediscutirem suas próprias estruturas físicas.
— Não importa o tamanho da empresa, ninguém pode prever e controlar o futuro — resume.
Não importa o tamanho da empresa, ninguém pode prever e controlar o futuro.
GIOVANNA FIORINI
Gerente de Inovação Aberta da Endeavor
E os números não mentem. Na Endeavor, até 2019, eram 24 parceiras na área de OI. Agora, são 45, aumento de 87,5% em menos de dois anos. A Renner é uma das adeptas no Estado e, entre as demais empresas, estão Arezzo, C&A, MAG Seguros, Suzano, CSN, Dexco e Votorantim.
Para se ter uma ideia do cenário, no país, segundo dados da consultoria Distrito, no primeiro semestre de 2021, foram 412 transações entre grandes empresas e startups, que somam US$ 5,6 bilhões. Significa que, em apenas seis meses, o valor negociado é 60% superior aos US$ 3,5 bilhões registrados no ano passado.
Até 2017, esse tipo de operação oscilava entre US$ 200 milhões e US$ 600 milhões. A partir de 2018, quando o patamar de US$ 1 bilhão é atingido, a curva passa a ser exponencial.
Conexão
Não é coincidência que nos últimos três anos, no Rio Grande do Sul, tenham surgido dois hubs (centros de conexão), financiados pela iniciativa privada. Uma delas é o Hélice, em Caxias do Sul, que reúne algumas das principais indústrias do polo metalmecânico.
Outro, o Instituto Caldeira, fica na zona norte de Porto Alegre, no antigo Shopping DC Navegantes, e foi fundado por 40 gigantes da economia gaúcha, em 2019. Até o final de 2021, comenta o diretor-executivo Pedro Freitas Valério, serão mais de 90 corporações plugadas. Um terço dos espaços pertence às fundadoras, e o restante é de startups e empresas de tecnologia vinculadas à chamada nova economia.
É muito difícil, para não dizer impossível, hoje em dia, fazer inovação 100% sozinho.
PEDRO FREITAS VALÉRIO
Diretor-executivo do Instituto Caldeira
Criado há três meses, o modelo de associados não-residentes chegará a 2022 com 150 participantes. Significa que a área construída de 22 mil metros quadrados é apenas a ponta de um iceberg formado por uma base de empreendedores que respiram inovação.
— É muito difícil, para não dizer impossível, hoje em dia, fazer inovação 100% sozinho. Deixou de ser um capricho e se tornou uma questão de sobrevivência dentro deste novo contexto tecnológico. As empresas, independentemente do porte, entenderam a importância de atuar de forma colaborativa em busca de soluções — diz Valério.
A explicação para tamanha procura passa pelo aumento da dificuldade de identificar soluções de competitividade para negócios já estabelecidos, com o olhar voltado apenas da “porta para dentro”.
Mudança do produto ao chão de fábrica
Maior fabricante de reboques e semirreboques da América Latina, a Randon atua desde 1949, em Caxias do Sul. Depois de um primeiro contato com o mundo da inovação aberta no Instituto Hélice, a empresa ampliou as discussões sobre o impacto das transformações digitais na cadeia e na indústria automotiva.
Era chegado o momento de partir para a ação. E, entre 2019 e 2020, uma série de iniciativas deram início ao que hoje é um complexo sistema pensado para preparar a companhia para o futuro do mercado.
— Não é algo pontual, mas sim uma transformação digital que cobre a empresa inteira — sintetiza o diretor de inovação da Randon, César Ferreira.
Não é algo pontual, mas sim uma transformação digital que cobre a empresa inteira.
CÉSAR FERREIRA
Diretor de inovação da Randon
Lançada no ano passado, a Randon Venture é o braço de investimento em startup do grupo, com foco em novas oportunidades.
Em um ano, entre as investidas estão TruggHub, Abbiamo, Grupo Delta, TruckHelp e Soon (conhecida anteriormente como Reboque.me).
Além disso, foi selada uma parceria com a 4all, que concretizou a criação de uma nova companhia para oferecer serviços financeiros digitais, por meio da R4 Digital. Ferreira explica que são diferentes posições de interesse, nos nichos de logística, automotor, bancos, consórcios e fintechs.
A rápida transformação não para por aí. Para aprimorar os processos fabris, também em 2020, a empresa criou uma unidade para atuar no suporte e desenvolvimento de automação industrial. Trata-se da Randon Tech Solutions (RTS) Industry. A meta é construir soluções, máquinas especiais e smart manufacturing (manufatura integrada por computador).
Sinergia
Com investimento de R$ 20 milhões, a divisão que vai ampliar a sinergia entre todas as unidades do grupo no desenvolvimento de processos e sistemas inteligentes de produtividade. Em fevereiro, adquiriu por R$ 14 milhões a Auttom, de Caxias do Sul, que atua no segmento de soluções tecnológicas em automação e robótica industrial.
Para a realizar as ações previstas no planejamento da companhia, a RTS Industry conta com uma central localizada próxima à sede, em Caxias do Sul, para a incorporação de equipamentos e a execução das células de produção.
Uma das primeiras medidas nesse sentido, foi a compra de máquinas de inovação em processos industriais, operadas por técnicos de automação, como Matheus Mallmann Zucolotto. Além disso, a companhia adquiriu 254 robôs e equipamentos para linha de montagem completa de caminhões, suspensão e um sistema de medição de precisão em 3D.
Dos ônibus para soluções sobre trilhos
Ao lado da Randon e outras gigantes da serra gaúcha, a Marcopolo é uma das incentivadoras do Instituto Hélice, em Caxias do Sul. O analista de Inovação João Carlos Paviani explica que essa foi uma grande “virada de chave” na região e também na empresa, que antes buscava a chamada inovação para sustentação, focada apenas no produto final, ou seja, ônibus.
Fundado há 72 anos, o grupo é um dos maiores fabricantes de carrocerias do mundo. Em 2019, nasceram duas iniciativas de negócios e inovação, que mudariam a forma de olhar para o mercado. Nesse contexto, a Marco Zero é o braço de investimentos, que prospecta novas tecnologias em parcerias fora do ambiente da empresa. Neste segmento, já são duas aquisições, cujos nomes e valores permanecem guardados a sete chaves.
Outra ação é a Next, venture build, também chamada de “fábrica de startups”. O gestor de investimentos da Marco Zero, Alexandre Cruz, comenta que uma das propostas aceleradas com startups pela Next foi a Marcopolo Rail. Agora, o projeto ganhou pernas, gestão e receitas próprias.
Trata-se da nova divisão de modais alternativos que, em dezembro de 2020, lançou o seu primeiro veículo leve sobre trilhos (VLT) para operar em uma rota turística. Até outubro, estão previstos os testes noturnos nos trilhos da Maria Fumaça, na Rota dos Vinhedos, em Bento Gonçalves.
Aeroporto
O VLT também conta com versões para atender aos sistemas de transporte urbanos e intercidades, e a Marcopolo fornecerá a tecnologia para o consórcio AeroGRU, responsável pelo projeto de transporte de passageiros da linha 13-Jade da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) aos terminais 1, 2 e 3 de passageiros do aeroporto internacional de Guarulhos, em São Paulo. O termo aditivo para o início das obras no trajeto de 2,6 quilômetros, com quatro paradas previstas, foi assinado em 8 de setembro.
A Marcopolo sempre buscou ser inovadora. Agora, o que temos é mais ferramentas para isso.
ALEXANDRE CRUZ
Gestor de investimentos da Marco Zero
— A Marcopolo sempre buscou ser inovadora. Agora, o que temos é mais ferramentas para isso. Com o mundo acelerando, estamos competindo com empresas como Enel e Apple, que também tem planos de veículos autônomos — comenta Cruz.
De acordo com ele, uma série de movimentos ligados à inovação aberta fizeram com que a empresa aproveitasse a conexão com os ecossistemas para transformar essa interação em ferramentas que se traduzem no olhar para outros caminhos e novos negócios.
Ele reforça que isso não se restringe ao país ou ao polo metalmecânico. Atualmente, existem três testes de conceito realizados em Israel. Os desafios: inteligência artificial e smart materials (manipulados para responder de forma controlável e reversível).
Procura por um portfólio para o futuro do agro
Uma das recém instaladas no Instituto Caldeira é a SLC Agrícola. Representante do setor mais tradicional da economia gaúcha, o agronegócio, a empresa fundada em 1977 é produtora de soja, milho e algodão. Também trabalha com pastagem e gado, na integração lavoura-pecuária.
Com matriz em Porto Alegre, possui 22 unidades de produção em sete Estados brasileiros. Na safra 2020/2021, totalizou cerca de 470 mil hectares plantados.
Head de Inovação da companhia, Frederico Logemann conta que a predisposição da empresa aos processos de inovação aberta chega com o programa Agro Exponencial, criado para analisar soluções de startups, hoje utilizadas em diversas áreas da agricultura digital.
A opção pelo Caldeira, no ano passado, gerou um novo programa de intraempreendedorismo, batizado de Ideias e Resultados. Para isso, foi criado um braço de investimentos, o SLC Ventures. O objetivo, comenta Logemann, é praticar um olhar de longo prazo:
— A meta é construir um portfólio de investimentos que represente o futuro do agro e seja capaz de renovar o negócio.
O primeiro aporte foi na Aegro, uma startup gaúcha fundada em 2014, que partiu da base de dados do Instituto Rio-Grandense do Arroz (Irga), para gerar um software que permite melhorar técnicas de manejo. A ferramenta oferece uma visão detalhada sobre a trajetória do dinheiro ao longo da safra, desde a compra de sementes até a venda da produção. O segundo, ainda não revelado, está bastante próximo de sair do papel.