Com a eclosão da pandemia e o vírus letal à espreita, um movimento que já vinha crescendo no mundo das corporações ganhou velocidade e urgência: a adoção do trabalho remoto. Um ano depois da confirmação do primeiro caso de coronavírus no Rio Grande do Sul, em meio a uma nova e assustadora onda da doença, empresas seguem com equipes longe da sede, adiam planos de retorno e antecipam a decisão de manter a medida mesmo depois que o pesadelo passar — a tendência, na avaliação de empresários e consultores, é de que prevaleça o modelo híbrido.
Pesquisas realizadas no fim de 2020 reforçam essa percepção. Uma delas, desenvolvida pelo editor-chefe da MIT Technology Review Brasil, André Miceli, consultou 2,2 mil organizações no país. Ao menos 80% informaram, em dezembro, que pretendiam manter o home office no pós-pandemia. No Rio Grande do Sul, onde 48 companhias responderam ao questionário, o índice chegou a 67%.
— A nossa leitura é de que o modelo padrão será híbrido, com um ou dois dias na semana em casa e o restante do tempo no escritório, nos setores em que isso for possível. As corporações vão tentar unir o melhor dos dois mundos (presencial e virtual). Acredito que muitas, inclusive, vão individualizar essa decisão. Pessoas com perfis diferentes, em empresas maduras, terão tratamentos distintos — diz Miceli, que coordena o MBA em Marketing e Inteligência de Negócios Digitais da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Outro levantamento, liderado pela SAP Consultoria em Recursos Humanos com apoio da Sociedade Brasileira de Teletrabalho e Teleatividades (Sobratt), chegou a resultados semelhantes. Das organizações que instituíram a modalidade durante a crise sanitária, 72% declararam o desejo de manter a medida.
Dessas, 58% ainda avaliam qual será a frequência das atividades a distância, 34% planejam assumir a alternativa de uma a quatro vezes por semana e 8% estimam adotar a prática cinco vezes a cada sete dias. Foram ouvidas 554 empresas, 99 delas (18%) no Rio Grande do Sul.
— Não estratificamos os dados por Estado, mas, de modo geral, ficou muito claro que o teletrabalho veio para ficar. No início, existia algum receio. De repente, do dia para a noite, as empresas tiveram de se adaptar. Hoje, não acredito que as coisas voltarão a ser como antes — afirma Sebastião Augusto Perossi, diretor da SAP.
Com 30 anos de experiência nos ramos de RH, desenvolvimento de pessoas e organizações, a presidente da Associação Brasileira de Recursos Humanos no Rio Grande do Sul (ABRH-RS), Crismeri Delfino Corrêa, também prevê transformações perenes.
— A mudança foi tão importante para as empresas que muitas não irão voltar ao regime presencial. Algumas inclusive já deixaram suas sedes, levaram computadores, mesas e cadeiras para os colaboradores e oficializaram a decisão. Até a maneira de fazer gestão mudou. O que importa não é mais a carga horária no escritório, mas as entregas. A produtividade melhorou — destaca Crismeri.
Cuidados redobrados
À frente da Fundação Família Previdência, empresa sediada em Porto Alegre que tem a maioria dos funcionários em home office há um ano, Rodrigo Sisnandes Pereira é testemunha dos resultados. Ele integra o grupo de executivos que planeja adotar o formato híbrido de forma definitiva assim que a covid-19 der trégua. Desde março de 2020, o diretor-presidente é um dos poucos a a atuar na sede da companhia, especializada em gestão de poupança previdenciária.
— Estou praticamente sozinho na empresa, mas acredito que tomei a decisão certa. Adaptamos o sistema e os contratos de trabalho e criamos uma ajuda de custo. Conseguimos dar tranquilidade às pessoas, fazer todas as entregas e ainda trazer a gestão de novos planos de previdência para cá. Tínhamos 82 funcionários e agora temos 93. Fizemos contratações já nesse novo modelo — relata Pereira.
Para saber como os funcionários avaliavam as mudanças, o diretor-presidente decidiu fazer uma sondagem interna entre janeiro e fevereiro deste ano. Nada menos do que 82% disseram não se sentir seguros para retornar. Questionados sobre qual seria a melhor opção de trabalho, no futuro, 79,7% apontaram a modalidade mista.
— Minha ideia é preparar a empresa para isso. Está claro que é o que todos desejam. Só preciso, antes, superar algumas amarras jurídicas — diz Pereira.
As incertezas sobre como operacionalizar a transição definitiva são comuns no meio empresarial. O teletrabalho recebeu um capítulo na CLT apenas em 2017, com a reforma trabalhista, e já há projetos em tramitação no Congresso para normatizar pontos específicos.
Em Estados como o Rio Grande do Sul, o número de novos processos judiciais envolvendo o tema é exíguo — segundo a Justiça do Trabalho, o volume passou de 15, em 2019, para 32, em 2020, em um universo de cerca de 100 mil casos abertos. Mesmo assim, com o avanço do home office, o assunto merece atenção.
Para garantir segurança a empregados e empregadores, o regime remoto deve ser previsto em contrato ou em termo aditivo. Questões envolvendo condições de trabalho e ressarcimento de valores gastos com equipamentos e infraestrutura devem ser negociadas entre as partes.
O grande desafio, na avaliação do advogado trabalhista Luis Otávio Camargo Pinto, presidente da Sobratt, é assegurar as melhores condições possíveis aos colaboradores, não apenas por questões jurídicas, mas para atingir o retorno esperado:
— As organizações precisam ter um olhar cuidadoso para esse trabalhador, porque é isso que vai trazer bons resultados. E mais: quem quiser reter talentos, especialmente os mais jovens, nômades digitais, precisará ter uma política de teletrabalho muito bem estruturada. Não há outro caminho.
Flexibilidade e menos tempo no trânsito
Aos 23 anos, Bianca Rodrigues de Castro, desenvolvedora júnior no setor de Negócios Digitais do Grupo Randon, vive a experiência que sempre buscou na carreira: desde março de 2020, exerce suas funções de casa, de forma remota.
Com apoio da organização, que tem sede em Caxias do Sul, na Serra, e está presente em mais de cem países, ela chegou a passar um mês com a família, em Tocantins, sem nunca deixar de trabalhar.
— Hoje não me imagino voltando a atuar full time (o tempo todo) presencialmente. Ganhei flexibilidade. Como moro em Farroupilha, gastava uma hora e meia em deslocamentos diários. Não perco mais esse tempo, e a qualidade do serviço melhorou — conta a tocantinense, que atua na programação de robôs.
Bianca faz parte dos 1.025 funcionários do grupo que estão em home office no Brasil (8% dos empregados no país). São profissionais dos setores administrativos e de tecnologia. O movimento, segundo a gerente de Pessoas e Cultura das empresas Randon, Valéria Neves, já vinha sendo planejado, mas foi acelerado pelo coronavírus:
— Conseguimos provar que a indústria também pode ser ágil e dinâmica nos momentos de crise. Está sendo um grande aprendizado.
Para assegurar o bem-estar de todos, a transição incluiu uma série de cuidados, do empréstimo de cadeiras e equipamentos ao pagamento de ajuda de custo. Em pesquisa interna realizada em julho, 71% dos entrevistados destacaram a comodidade do novo modelo.
Agora, o grupo estuda quais formatos de trabalho serão adotados no pós-pandemia. Embora a presença física continue sendo fundamental em muitas áreas, a intenção é mesclar modalidades.
— Em alguns setores, estudamos estabelecer o formato híbrido, mas também temos um piloto voltado ao teletrabalho, com atuação 100% remota, principalmente para as áreas de tecnologia. Acreditamos que isso deve propiciar, inclusive, maior atração e retenção de talentos — projeta Valéria.
Teletrabalho no pós-pandemia
- Oito em cada 10 empresas, segundo pesquisa da MIT Technology Review Brasil, pretendem manter algum tipo de home office
- Quase 10% dos entrevistados não querem mais voltar para o escritório
- Destes, o maior grupo é de pessoas entre 35 e 44 anos (48%), que entendem que podem conciliar atribuições pessoais e profissionais em casa
- 100% das pessoas ouvidas dizem acreditar que, quando a pandemia acabar, as empresas devem adotar um modelo híbrido, que mistura trabalho presencial e remoto
Quem pode se destacar
De acordo com o estudo da MIT Technology Review Brasil, duas características são associadas a um melhor desempenho no home office — e podem ajudar a conquistar espaços. A primeira delas é disciplina. Indivíduos conscienciosos, segundo a pesquisa, tiveram resultados mais produtivos trabalhando em casa. A segunda marca é a capacidade de adaptação: pessoas com maior abertura a situações novas também se destacaram.
— Não adianta ser aberto ao novo e indisciplinado. O mesmo vale para quem é disciplinado, mas muito fechado. Os indivíduos que se saíram melhor nesse ambiente novo foram aqueles que apresentaram esses dois traços de personalidade. A partir de agora, essas qualidades farão cada vez mais diferença — afirma André Miceli, editor-chefe da revista e professor da Fundação Getulio Vargas.
Liberdade para escolher
Além de avaliar o modelo ideal de trabalho no futuro, muitas empresas se preocupam em dar aos funcionários a oportunidade de decidir sobre qual formato preferem. Passada a pandemia, a medida é recomendada pela presidente da Associação Brasileira de Recursos Humanos no Estado (ABRH-RS), Crismeri Delfino Corrêa:
— O home office é ótimo, mas ficou claro que não serve para todo mundo, e a gente precisa acolher as pessoas que não se adaptaram. As empresas devem compreender isso. Estamos em um momento de transição.
Nas Lojas Renner, que vêm adotando o teletrabalho para cargos administrativos, essa é a perspectiva. Conforme Clarice Martins Costa, diretora de RH da companhia, a intenção é, no futuro, manter o formato híbrido onde for possível, oferecendo a chance de escolha.
— Acreditamos na importância de que todos tenham liberdade para conversar com seus gestores e chegar a uma fórmula que equilibre bem-estar e produtividade — resume Clarice.