O plano do governo federal de substituir o Bolsa Família com um novo programa de transferência de renda teve um novo capítulo nesta segunda-feira (28). O governo federal anunciou as bases para o novo programa social, o Renda Cidadã, afirmando que ele será financiado com recursos que iriam para o pagamento de precatórios (valores devidos pela União após sentença definitiva na Justiça) e para o Novo Fundeb.
A reação do mercado foi tensa. O dólar testou as máximas em quatro meses e chegou a bater na máxima do dia em R$ 5,67, o maior valor diário desde 21 de maio, quando foi a R$ 5,70. Nesse ambiente de nervosismo, o Banco Central precisou intervir e vendeu US$ 877 milhões no mercado à vista, no primeiro leilão neste segmento desde 21 de agosto. Assim, o dólar arrefeceu o ritmo de valorização, ajudado também pelo fato de a oferta do BC ter coincidido com perda de fôlego da moeda americana no mercado internacional. No final do dia, o dólar à vista encerrou com valorização de 1,44%, cotado em R$ 5,6353, o maior nível desde o fechamento de 20 de maio.
Na Bolsa de Valores de São Paulo, no pior momento do dia, o principal índice da B3 foi ao menor nível desde 29 de junho e, ao final da sessão, mostrava perda de 2,41%, aos 94.666,37 pontos - menor patamar desde o encerramento de 26 de junho, então aos 93.834,49 pontos. Nos juros, algumas taxas de médio e longo prazo chegaram a subir até 75 pontos-base nas máximas do dia.
— O dia estava muito bom lá fora, apesar dos receios com a segunda onda do coronavírus na Europa. Daí os fatores locais acabaram dando esse grande start da azedada de humor — afirmou o gestor de renda fixa da Sicredi Asset, Cassio Andrade Xavier.
O gerente de Tesouraria do Travelex Bank, Felipe Pellegrini, destaca que o dia no mercado de câmbio foi "nervoso", com o anúncio do financiamento do programa Renda Cidadã provocando "indisposição", fazendo o investidor buscar proteção no dólar.
— Vamos ter que aguardar cenas do próximo capítulo. O problema é como fica o Orçamento — disse ele.
Além disso, o líder do governo federal na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros (PP-PR), deixou claro que não há votos suficientes para aprovar a reforma tributária, o que piorou ainda mais o humor dos investidores.
— Caiu muito mal a falta de acordo na reunião de líderes sobre a reforma tributária. Com reformas necessárias ainda distantes, o que prevalece é o encontro com a verdade, após um avanço prolongado movido basicamente por fluxo doméstico. Ainda sem reformas, fala-se agora no Renda Cidadã, se preciso for até tirando de precatórios. Assim, Bolsonaro volta a se mostrar mais preocupado com a reeleição do que com o ajuste das contas e as reformas — diz Luiz Roberto Monteiro, operador da mesa institucional da Renascença. — Apesar de toda retórica do Guedes, a agenda econômica está emperrada, houve poucos avanços neste governo — completou.
Críticas de organizações
Organizações da sociedade civil ligadas à defesa da renda básica e da educação reagiram à proposta do governo de bancar o novo programa social, o Renda Cidadã, com recursos do Fundeb, o fundo voltado para a Educação Básica.
A Rede Brasileira de Renda Básica, que reúne 160 entidades, alerta que o uso dessa verba para bancar gastos da assistência social é inconstitucional. "É descabido que o governo aponte para o Fundeb como fonte de recursos para a criação de seu programa, algo já rejeitado pelo debate público", critica a Rede em nota.
Além disso, a diretora de Relações Institucionais da Rede, Paola Carvalho, considera que a inclusão de 10 milhões de novos beneficiários no programa social, como planejado pelo governo, é bastante acanhada.
— A fila de espera para o Bolsa Família chegava a 2 milhões de famílias antes mesmo da pandemia. Soma-se a isso a defasagem dos valores do benefício, que vem se acumulando há anos — alerta Paola.
Segunda ela, a pandemia revelou números de desigualdade econômica e social que exigem das políticas uma aproximação a uma renda básica, universal e incondicional.
A presidente executiva do Todos pela Educação, Priscila Cruz, também divulgou nota com duras críticas. Nas redes sociais, ela destaca que o Fundeb só pode ser utilizado para manutenção e desenvolvimento do ensino. "Já vimos essa tentativa de burlar a lei do teto (de gastos) usando o Fundeb como hospedeiro. A Câmara dos Deputados não permitiu", escreveu. Segundo ela, o Congresso precisa fazer frente a esse tipo de manobra.
Governo nega "pedalada"
No final do dia, o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho, disse ao Estadão que é completamente equivocado comparar o adiamento de pagamento de precatórios (valores devidos pela União após sentença definitiva na Justiça) a uma pedalada fiscal.
Bezerra ponderou que o Orçamento está sem gordura e a prioridade que se que se impõe é a de assistir os que vivem a abaixo da linha da pobreza. Na proposta orçamentária de 2021, R$ 54,7 bilhões estão reservados para o pagamento dos precatórios, sendo R$ 22,2 bilhões em benefícios do INSS, R$ 10,5 bilhões em gastos com pessoal da União, R$ 1,4 bilhão em benefícios do BPC (pago a idosos e pessoas com deficiência de baixa renda) e R$ 26,6 bilhões em outros tipos de débitos do governo com seus credores. O valor total é o dobro dos investimentos do governo federal programados para 2021.
Ele informou que o uso dos recursos dos precatórios e de parte do Fundeb, o fundo para a Educação Básica, abre um espaço de R$ 40 bilhões.
— Está correto pagar R$ 50 bilhões de precatórios e investir R$ 26 bilhões apenas? — criticou.
Para o líder, a proposta valoriza o teto de gastos, mecanismo que limita o avanço das despesas à inflação, e não significa um "drible", já que os recursos serão utilizados para manter as crianças nas escolas e reduzir a evasão escolar.
A fala de Bezerra fecha com o que disse Paulo Guedes, ministro da Economia, mais cedo.
— O dinheiro do Brasil estava todo carimbado. Vamos começar agora progressivamente a reavaliar o uso dos recursos — afirmou.