Carcaças de animais em decomposição nos campos e nas matas nativas. Plantas industriais e de cooperativas devastadas. Insumos, produtos, rações, embalagens, instalações e maquinários inutilizados pelo barro. Armazéns, chiqueiros, tambos e aviários destruídos. Estradas submersas e lavouras em semeadura (milho) e floração (trigo) alagadas. Atividade e renda dos produtores comprometidas.
Essa é a realidade na zona rural de pelo menos 79 municípios gaúchos com decretos de emergência já reconhecidos, sobretudo os do Vale do Taquari e do norte do Estado, desde o início das enxurradas, em 4 de setembro. Três semanas depois, os relatos não param de emergir.
Seno Messer é o presidente do Sindicato Rural de Colinas — cidade de 2,4 mil habitantes entre Roca Sales e Estrela. Ao lado da esposa, Edi Messer, relembra o terror vivenciado em menos de três horas, na noite em que as águas do Rio Taquari levaram o trabalho e o patrimônio erguido pelo casal por toda a vida.
Duas creches (local de aleitamento dos porcos) vieram abaixo. A plantação de milho para rações, metade do gado de corte, vacas leiteiras e galinhas desapareceram em ondas formadas num dos canais do Taquari, que avançou sobre a propriedade com a "violência de um mar", relatam. Os berros da única ovelha que mantinham na propriedade, antes do afogamento, não lhes sai da memória.
— Restaram ruínas e seis anos de uma dívida para pagar. Se a estrutura estivesse em pé, poderíamos recomeçar. Era o nosso trabalho, nossa renda, o meu forte. Estou desistindo da atividade, precisamos de ajuda e recursos a fundo perdido — lamenta o produtor de 62 anos, ao apontar para os escombros, cujo financiamento ainda terá de quitar, agora, sem ter sequer de onde tirar o próprio sustento.
— A essa altura, ter de vestir a roupa que outros me doaram, porque já não tenho nada... — interrompe-se por uma lágrima que escapa atrás dos óculos.
Juntos, os 79 munícipios respondem por 55,07 milhões de unidades de aves, porcos e vacas leiteiras, o que representa quase um terço (28%) das 196,8 milhões existentes no Estado. Nos locais, são gerados, por ano, em torno de R$ 2,7 bilhões em produtos como ovos, mel, leite e lã — segundo as pesquisas da Pecuária Municipal e da Produção Agrícola Municipal, ambas atualizadas na última quinta-feira, com dados de 2022, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Outros R$ 20,9 bilhões brotam do trigo, do milho, da soja, da aveia, dos tomates, do tabaco, da laranja, da uva, da maçã, da mandioca e da erva mate, por exemplo. Em apenas seis cidades afetadas — Encantado, Estrela, Arroio do Meio, Teutônia, Colinas e Cruzeiro do Sul — estavam quase 5,4% de todos os porcos do Rio Grande do Sul. Eram 332,2 mil cabeças das 6,1 milhões que formam o rebanho gaúcho de suínos. Ao considerar os 79 municípios, a participação é de quase um quarto: 22,4%, com 1,37 milhão de porcos.
Por que a situação afeta a atividade econômica gaúcha
- O que acontece no agronegócio reverbera mais forte no RS: a agropecuária representa cerca de 10% do PIB estadual; no Brasil, é inferior a 5%
- Quando considerados os setores correlatos, a representação sobe para 40% no RS e 27% no país
- A influência da agropecuária nas economias municipais e do Estado é superior à sugerida pelos números agregados segundo os setores de atividade econômica; por isso, sempre que há problema no campo, freia-se a migração e a geração de renda nos municípios
- As cidades integram-se às economias regionais com produtos e matérias-primas para a agroindústria. Os locais demandam um variado conjunto de bens e serviços agropecuários e não agropecuários
- Significa que a atividade primária interliga-se com setores “antes da porteira”, que fornecem insumos, máquinas e implementos, assistência técnica e financiamento. E também com os setores “depois da porteira”, responsáveis pelo processamento e pela distribuição da produção agropecuária
- Indiretamente, há ainda os impactos derivados do gasto do excedente econômico gerado
- Na agropecuária, isso se traduz em fonte de dinamismo para a indústria e para o setor de serviços local e regional
- Como consequência, quando a roda gira mais lenta para todos, faltam produtos, preços aumentam e a atividade reduz
- Os recentes acontecimentos no Vale do Taquari ampliam o problema da falta de sucessão no campo, uma situação que reduz a quantidade de produtores ano após ano. Economista e pesquisador do DEE, Martinho Lazzari não descarta efeitos no mercado de trabalho
O que a agropecuária do Estado precisará superar
Frango
As 79 cidades com decreto de emergência respondem por 26,% dos frangos. O Vale do Taquari, por exemplo, abriga seis dos principais frigoríficos. Há problemas em maquinários e estruturas que afetam a produção. A Associação Gaúcha de Avicultura (Asgav) estima em R$ 230 milhões os prejuízos.
Na granja avícola Bom Frango (que atua com 57 integrados, com capacidade de alojamento de 750 mil aves por mês), houve danos em frigoríficos, na fábrica de ração, no secador e na armazenagem de grãos, gerando perdas avaliadas em R$ 7,8 milhões. Atualmente, as atividades ocorrem com menos da metade da capacidade.
Indústria
A capacidade da fábrica de produtos industrializados da Minuano, em Arroio do Meio, era de 2,3 mil toneladas/mês antes da enchente e abrigava 380 funcionários. Com danos em equipamentos, estrutura e refrigeração, houve o descarte de produtos, insumos e matérias-primas.
Por mais de uma semana, os clientes e o mercado onde atua ficaram desabastecidos e sem gerar faturamento. Ainda não há estimativa do valor dos prejuízos, mas serão elevados, diz Margareth Schacht Herrmann, diretora Industrial da companhia.
Cooperativas
Na Languiru, há danos nos frigoríficos de suínos (Poço das Antas) e de aves (Westfália), na indústria de laticínios (Teutônia), na fábrica de rações (Estrela) e no posto de recebimento de grãos (Estrela). Dos 3.995 associados, 2.463 (61,7%) ficaram sem produção, em 40 municípios, a maioria do Vale do Taquari.
Mais de 80% dos funcionários tiveram perdas com as enchentes. O Sistema Ocergs aponta que a situação prejudica 96 cooperativas gaúchas de todos os ramos.
Leite
A Associação dos Criadores de Gado Holandês do RS (Gadolando) estima perdas de 500 mil litros e 10 mil hectares de pastagem. Com problemas de alimentação, segundo o Sindicato da Indústria de Laticínios e Produtos Derivados no RS (Sindilat-RS), o setor — que já enfrentava entraves na formação de preços e concorrência com o Mercosul — receberá carga adicional nos custos e, consequentemente, mais redução de renda, algo desestimulante para a atividade.
Números parciais da Emater-RS apontam em R$ 1 bilhão as perdas da cadeia produtiva em razão das chuvas nos 79 municípios com decreto de emergência já reconhecido. Estes municípios geraram R$ 2,1 bilhões, ou seja 23%, dos R$ 9,1 bilhões movimentados pelo segmento em 2022, segundo o IBGE.
Suínos
Há danos e paralisações em empresas de grande porte. As maiores, como BRF, JBS e Dália, têm produtores integrados ou cooperados com avarias, que ampliam questões relacionadas com a intensidade de produção das plantas, conforme o Sindicato das Indústrias de Produtos Suínos do RS (Sips), bem como trabalhadores afetados.
No atual cenário, boa parte do beneficiamento (abates e produção de embutidos) migrará para Santa Catarina, o que reduzirá as divisas gaúchas (tributos e circulação de valores) relativas à produção, projeta o presidente do Sips, Rogério Kerber.
Grãos
No final do plantio do milho e começo da floração do trigo, cooperativas que recebem os grãos em armazéns contabilizam as perdas junto aos associados. Muitas que entram com o financiamento de parte dessas safras já tiveram perdas de R$ 14 milhões com a estiagem. É o caso da Arla, de Lajeado, que atua também em Cruzeiro do Sul, Arroio do Meio, Encantado, Roca Sales, Estrela, Teutônia, Muçum e General Câmara. Tem 2 mil cooperados e R$ 20 milhões em aberto nas lavouras atingidas.