Pelo terceiro ano consecutivo, lavouras de uvas finas e de oliveiras são atingidas pela deriva do agrotóxico 2,4-D, herbicida hormonal aplicado nos campos para eliminar o inço antes do plantio da soja. Fatores como má aplicação e pulverização em condições climáticas inadequadas permitem que o vento carregue o 2,4-D por longos caminhos, atingindo plantações vizinhas.
Ao entrar em contato com outras culturas, o herbicida hormonal causa atrofia nas plantas, que deixam de crescer e não dão frutos. Nos últimos dois anos, houve perdas de até 60% das safras de uvas e olivas, e o prejuízo já se apresenta novamente para este ano.
Na Metade Sul do Estado, produtores começaram a observar sintomas de deriva nas suas plantações. Entre agosto e 22 de outubro deste ano, a Secretaria da Agricultura informou ter recebido 13 denúncias relacionadas aos herbicidas hormonais — no mesmo período do ano passado, foram oito, o que indica crescimento de casos.
O conflito entre porteiras no Rio Grande do Sul, colocando produtores em lados opostos, emite sinais de ânimos acirrados. De um lado, proprietários afetados afirmam descrença nas instruções normativas criadas pela Secretaria da Agricultura em 2019 para regrar o comércio, a prescrição e a aplicação do 2,4-D em 24 municípios gaúchos.
O governo estadual divulgou nesta semana que, somente em relação à última safra, lavrou autos de infração contra 600 produtores rurais que usaram indevidamente os herbicidas hormonais, atuação elogiada pelo promotor Alexandre Saltz, da Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre, que atua no caso. Os autos de infração geram processos administrativos que podem resultar em multas entre R$ 1 mil e R$ 20 mil, além do encaminhamento dos casos para o Ministério Público fazer a responsabilização penal, com base na Lei dos Agrotóxicos.
Apesar disso, os produtores prejudicados, após mais de um ano de vigência das instruções normativas, as consideram insuficientes e pretendem buscar soluções em outras esferas.
— Já começaram a aparecer vários casos e estamos muito preocupados. O forte da aplicação do 2,4-D vai começar agora, em novembro, porque o plantio da soja atrasou neste ano em função da estiagem — diz Norton Sampaio, engenheiro agrônomo e produtor de uvas em Bagé.
O vinhedo de Sampaio, mais uma vez, está apresentando sintomas de atrofia pela ação do agrotóxico. Incrédulo quanto à possibilidade de mediação pelo governo estadual, ele planeja com outros produtores, em reuniões virtuais, alguma reação por outras vias.
— Temos certeza de que são totalmente inócuas as instruções normativas. Demos um voto de confiança, mas elas não deram certo. Estamos verificando todas as possibilidades jurídicas que temos. Buscamos alternativas para uma ação em conjunto das cadeias produtivas. Teria maior impacto. Já é o terceiro ano, não vamos mais aceitar humildemente o verdadeiro desmonte da vitivinicultura gaúcha — afirma Sampaio.
Para Valter Pötter, presidente da Associação de Produtores de Vinhos Finos da Campanha Gaúcha, a situação é "crítica".
— Estão acabando com qualquer possibilidade de diversificação de culturas — lamenta.
Nesta semana, a agrônoma e produtora rural Eveline Previtali deparou com seus vinhedos, em Dom Pedrito, emitindo os primeiros sinais de atrofia e retorcimento das plantas. O indicativo é de que, mais uma vez, sua propriedade foi atingida pela deriva do 2,4-D. Ela também planta oliveiras e, no ano passado, assegura não ter colhido nenhuma azeitona. Teme que, agora, o drama se repita.
— Todo ano é a mesma coisa. É mau uso do herbicida, descaso com os outros produtores, mas a soja sempre se discute pelo viés do poderio econômico. Nesta semana, já gastei quase R$ 20 mil em aminoácidos para tentar recuperar os vinhedos e eliminar o herbicida — diz.
Vaivém para coleta de amostras
Eveline denunciou a suspeita de deriva pelo canal criado pela Secretaria da Agricultura. Quando os sintomas são compatíveis com o 2,4-D, uma equipe da pasta se desloca até a propriedade para fazer a coleta de amostras. Em seguida, elas são encaminhadas para laboratório, onde exames irão determinar se houve ou não ataque pelo herbicida.
Isso está sendo feito desde 2018, mas a primeira resposta por escrito enviada a Eveline foi de que "o secretário determinou a suspensão da programação de diárias. Como teremos que deslocar equipe de fora para o atendimento, informamos que até segunda ordem da direção, estamos limitados ao atendimento".
Foi dada ainda a sugestão de que Eveline fizesse a coleta e congelasse as amostras. Contudo, após a negativa inicial, a Secretaria da Agricultura esteve na propriedade da produtora nesta quarta-feira (28) para fazer os procedimentos padrões.
— Já contornamos esse problema com outros recursos e fundos que temos. Aconteceu a coleta na casa desta produtora, em menos de 24 horas conseguimos estar lá, deslocando uma equipe que não era da região para fazer a coleta. Foi um caso extremamente isolado, não há motivo para preocupação — assegura Rafael Friedrich Lima, chefe da Divisão de Insumos e Serviços Agropecuários da Secretaria da Agricultura.
Lima avalia que o crescimento de denúncias decorre da estrutura montada no governo estadual para recebê-las, promover coletas e testes, fazer fiscalizações de campo e abrir processos administrativos nos casos de comprovado uso ilegal de agrotóxicos.
— Acreditamos que o crescimento ocorre pela ampla divulgação que vem se dando. O produtor sabe em qual canal ele pode denunciar, está mais familiarizado e sabe que haverá suporte para o atendimento. Muitos têm feito denúncias com filmagens e registros fotográficos, isso ajuda bastante a fiscalização — diz.
Ele avalia que as instruções normativas produziram efeitos positivos, citando, para além da penalização, bons exemplos de antigos infratores que corrigiram condutas.
— A princípio, acreditamos que a estratégia foi acertada. Tivemos o caso de um produtor rural que recebeu a nossa fiscalização e, depois disso, fez a troca dos bicos de pulverização. Ele filmou a aplicação e ficou excelente, não teve nada de deriva — afirma Lima.
Promotor elogia resultados
Para o promotor Alexandre Saltz, as medidas adotadas alcançaram sucesso. Ele participou do grupo de trabalho da Secretaria da Agricultura que organizou as instruções normativas no intuito de combater a deriva.
Saltz explica que se estabeleceu um fluxo com o governo do Estado, de forma que todos os autos de infração emitidos por mau uso do herbicida são encaminhados ao Ministério Público para responsabilização penal. Os promotores propõem aos acusados acordos de não persecução penal, previstos na Lei Anticrime.
— Nós estamos propondo uma espécie de reparação pelos danos, com o pagamento de um valor (de multa) que é destinado ao fundo de restauração dos bens lesados, e algumas outras obrigações acessórias — explica Saltz.
Para o promotor, o aumento das denúncias é um fato positivo porque demonstra atenção da sociedade para o uso indevido de agrotóxicos.
— Só os autos de infração emitidos por conta do 2,4-D foram mais numerosos do que a média de todas as outras atividades fiscalizadas juntas. Isso reforça a ideia de que a gente acertou na medida. O produto continua no mercado, mas o mau uso sujeita a todo o tipo de responsabilização. E isso está acontecendo. O produtor rural começa a enxergar de novo na Secretaria da Agricultura um bom espaço para reclamar, porque sabe que a situação vai adiante — analisa.
Presidente da Associação dos Produtores de Soja do Estado do Rio Grande do Sul (Aprosoja-RS), Décio Teixeira acredita que as contaminações de outras culturas por deriva de 2,4-D tendem a reduzir na atual safra.
— Eu sei que esse assunto não é simples, é bem complicado. Os produtores foram instruídos, alertados, foram feitos cursos de aplicação. Acredito que o pessoal está mais consciente e vão baixar os índices. Os 600 autos de infração são da safra passada — comenta.