Mesmo quem não tem o mínimo interesse pela Expointer, mas cultiva o hábito quase sagrado do churrasco de domingo, deve um agradecimento à feira. Nascida como uma exposição genética, a mostra conserva a missão precípua de selecionar os melhores exemplares de cada raça para garantir a produção de uma carne mais macia e saborosa, de um leite mais nutritivo e da melhor lã para a confecção das peças mais finas. Está a serviço do consumidor cada vez mais exigente, em última instância, o jurado que avalia cada animal levado à pista nos julgamentos de Esteio. Afinal, os campeões são os escolhidos para espalhar seus genes para o rebanho e dar origem a uma geração de descendentes que têm no DNA a missão de perseguir os atributos desejados pelo mercado.
– O negócio é criar animais, mas tudo termina com um bife no prato – resume o argentino Mauricio Groppo, jurado do angus, raça bovina consagrada pelo marmoreio, a gordura entremeada nas fibras que confere ainda mais palatabilidade à carne.
Ao cotejar os concorrentes, três pontos principais são balanceados. Padrão racial, qualidades que farão o animal ter um bom desempenho a campo, e uma observação criteriosa do posterior e do dorso, partes nobres da carcaça, de onde são extraídos os cortes mais valorizados. Neste último ponto, a observação tem a tecnologia como aliada. A ultrassonografia, por exemplo, permite medir a chamada área de olho de lombo, que tem uma correlação com a quantidade de carne existente em outros pontos da rês.
Técnico oficial da Associação Brasileira de Hereford e Braford (ABHB), Marco Antonio Borges de Araújo Bastos lembra que a ideia por trás da seleção é sempre gerar animais melhores do que os pais, pela junção de características desejadas. Todo este trabalho, ressalta, tem o objetivo de produzir a carne que o mercado exige cada vez mais. No caso dos touros, os campeões são procurados pelas centrais de inseminação e, por meio da venda de sêmen, conseguirão pulverizar ainda mais as suas características para o papel de melhoramento do rebanho de corte.
– A evolução da qualidade do rebanho nos últimos 15 anos é fantástica – diz Bastos, referindo-se à padronização do gado, com a pressão selecionadora se voltando para as raças britânicas como hereford e o angus e suas derivadas sintéticas (cruzamento com zebuínos para ganho de rusticidade), como o braford e o brangus, gerando bonificação pelos frigoríficos para os pecuaristas por serem animais que produzem uma carne que o consumidor percebe o valor a aceita pagar um pouco mais.
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Consumidor busca experiência gastronômica
De passagem pela Expointer no início da semana, a convite da ABHB, o açougueiro paulistano Rogerio Betti, um dos criadores da Churrascada, autointitulado o maior evento carnívoro do Brasil, acompanhava uma das edições da Vitrine da Carne Gaúcha, oficina que atrai grande público todos os anos para ensinar como aproveitar melhor cortes considerados de segunda, derrubar mitos e difundir a qualidade da carne das raças criadas no Rio Grande do Sul.
Também pecuarista, com uma fazenda na Bahia, Betti observa que é nítida, nos últimos anos, a mudança de comportamento do consumidor. Comer carne bovina, diz ele, deixou de ser somente o ato de ingerir proteína para apenas se alimentar, e é cada vez mais é associado a prazer. Ou seja, a moda é comer menos, mas melhor. O desafio de todos os elos da cadeia, entende Betti, é garantir acesso a um produto diferenciado e de padrão superior, sem margem para uma surpresa negativa no prato. Para ele, a carne atravessa uma fase já experimentada por café e cerveja, por exemplo, que deixaram de ser commodity para encontrar um nicho premium, voltado a pessoas dispostas a abrir o bolso por uma experiência gastronômica compensadora. E, para isso, qualidade é essencial.
– Um grande assador ou parrillero não consegue dar um "up" em uma carne ruim – simplifica Betti.
Genética como a das raças britânicas, lembra o açougueiro, pecuarista e assador, é uma predisposição para se obter carne de qualidade. Mas a tarefa, completa o especialista, ainda precisa da garantia de boa alimentação e manejo para o rebanho. O argentino Mauricio Groppo, jurado do angus e com uma tradição familiar de mais de cinco décadas criando a raça, lembra que, apesar de o produto nobre ser um pouco mais caro, o consumidor da América do Sul é privilegiado. Afinal, ainda paga menos do que o Europeu e o americano para saborear a pré-histórica comunhão da carne com as brasas.
Em busca da nata da raça
A produção cada vez maior por animal também é resultado da triagem morfológica que ao longo dos anos forjou as raças leiteiras. O trabalho de observação que atravessou eras permitiu que as vacas evoluíssem de uma capacidade de gerar alimento somente para sua cria a exemplares que hoje garantem na ordenha um volume superior a 10% de seu peso todo o dia, lembra José Ernesto Ferreira, veterinário e secretário do conselho técnico da Associação de Criadores de Gado Holandês do Rio Grande do Sul (Gadolando).
– Todos os aspectos físicos do animal foram selecionados para que chegássemos hoje ao ápice da aptidão. Quando era criança, vacas que davam 30 litros por dia eram um absurdo. Hoje é comum, entre os melhores animais, mais de 100 litros diários. A população se beneficia porque estes animais estão em todo o mundo, matando a fome do planeta – observa Ferreira, referindo-se à incapacidade de suprir o consumo com o rebanho atual caso a produtividade não disparasse nos últimos anos.
Mas o ganho do consumidor não está apenas no incremento do volume, uma escala que ajuda a reduzir custos e evita alta maior dos preços. Aliado à seleção morfológica, avaliações ajudam a optar pelo leite de acordo com o teor de proteínas, cálcio e gordura, por exemplo. Uma matéria-prima com maior teor de sólidos, complementa Ferreira, é mais nutritiva e rende mais para a indústria. Ganham os laticínios, que têm à disposição um leite capaz de produzir mais queijos, manteigas e iogurtes, o consumidor, que vê uma oferta maior de derivados que também ajuda a segurar preços, e os produtores, cada vez mais remunerados pela qualidade do leite.
Merino para vestir melhor
O esforço para selecionar os melhores exemplares não serve apenas para o prazer à mesa. Para vestir, também. É o caso do merino australiano, raça ovina que produz a lã considerada de melhor qualidade, empregada na produção de tecidos usados até na confecção de trajes que podem ser vestidos no verão. Isso devido à característica térmica da fibra. Proprietário do carneiro grande campeão da raça na Expointer, o criador Geraldo da Paixão Jesus, da Cabanha Nossa Senhora Aparecida, de Bagé, exibia faceiro os atributos do animal que, em sua avaliação, representa o que foi traçado como norte para a raça pela associação de criadores.
– Queremos um bom comprimento de mecha, lã de micronagem (finura) baixa, que é melhor para lãs frias, que dão tecidos que servem para inverno e verão, além de um velo cor marfim – enumerava Jesus.
O resultado em forma de vestuário de lã de qualidade superior também pode ser conferido na própria Expointer. Criadores de merino há mais de seis décadas, os proprietário da Cabanha Tapera, de Rosário do Sul, decidiram há 10 anos criar uma malharia própria em Nova Petrópolis, na Serra. A La Merina atingiu a marca de 7 mil peças produzidas por ano de itens como casaquinhos e capas femininas e blusas para homens. A coleção pode ser conferida na loja no parque Assis Brasil.
– Foi uma alternativa em um período de desvalorização da lã – conta a Leila Rodrigues, proprietária da malharia.
Mercado faminto
Com um mercado crescente no país que leva a demanda a ser muito superior à oferta para abate, a carne ovina também busca se aperfeiçoar na pressão selecionadora da Expointer. No texel, hoje a principal raça de
corte no Rio Grande do Sul, o olho clínico do jurado disseca os animais em busca do melhor padrão racial, as características na silhueta que indicam um bom aproveitamento da carcaça e outros aspectos que mostram, por exemplo, a capacidade de ser prolífico e precoce.
– Ser precoce indica que o animal vai estar pronto para abate mais jovem, o que se traduz em carnes e cortes mais macios, saborosos e tenros – explica o veterinário Maximiliano de Carvalho Neves da Fontoura, jurado e criador da raça, acrescentando que pouca gordura também é outra preferência expressada pelo consumidor.
Se for portador destas qualidades, poderá ser terminado com uma idade de 90 a 100 dias. Se não, pode levar até 150 dias, fatalmente produzindo uma carne que não terá a mesma qualidade e o animal ainda ficará mais tempo na propriedade se alimentando e gerando custos. Harmonia corporal, boa interação entre parte óssea e músculos, e características como um pernil em formato mais arredondado ou longilíneo também se refletem na produção de carne e pesam na hora de o jurado apontar o dedo para os grandes campeões. Um posterior em forma mais arredondada, ilustra Fontoura, indica a possibilidade de se retirar um número maior de cortes da peça.
– Esses animais alcançam um alto valor porque têm a capacidade de transformar suas qualidade aumento de produção de carne – finaliza o jurado.