A torrense Margarete Behenck Fernandes tem mais de três décadas de carteira de habilitação, mas há cerca de oito anos bateu o carro e se afastou por completo do volante. Moradora de Porto Alegre, ela relata que o trauma do acidente ficou gravado na mente.
— Eu estava em Três Cachoeiras, indo à casa de uma irmã. Era estrada de chão e tinha uma rampa para chegar ao terreno. Quando acelerei para subir, sei lá se deu uma pane, se me atrapalhei com os pedais, só sei que não consegui frear e bati na fábrica de esquadrias do meu cunhado, destruí a frente do carro — iniciou Margarete.
Ela conta como o trauma afetou a vida dela.
— Eu e meu marido não nos ferimos, só que para mim foi muito traumatizante. Desde que sofri o acidente, eu não conseguia nem pensar em me sentar no banco do motorista. Eu olhava para outras mulheres na direção e me sentia um nada, era muito triste. Mas agora já está fazendo quase um ano que comecei o meu processo de retomada da direção — comemora a massoterapeuta de 61 anos.
A solução partiu do marido que, sabendo da dificuldade da esposa, apareceu certo dia carregando o cartão de visitas das aulas de direção do Gurias no Trânsito:
— Ele me disse: "Esse é teu presente de Dia das Mães. Liga para ela e marca uma aula experimental" — relembra Margarete.
Quem atendeu o telefone e reabilitou Margarete foi Jessica Oliveira, instrutora de trânsito credenciada junto ao Detran-RS desde 2018 e criadora do Gurias no Trânsito. O negócio é um treinamento de direção para mulheres que já tem CNH e o foco é ajudá-las a se sentirem mais confiantes no trânsito ou então a voltarem a dirigir depois de experiências traumáticas. As aulas são em Porto Alegre e na Região Metropolitana e ocorrem desde 2021.
— Muitas vezes, as mulheres têm habilitação e se privam de estar no trânsito, porque não é fácil. Eu tirei minha habilitação aos 33 anos e lembro que, no início, as pessoas me xingavam, buzinavam e aquilo me dava uma sensação muito ruim. Com o passar do tempo, fui me desenvolvendo. A verdade é que todo mundo que está lá erra, faz coisa errada e está tudo bem, então nós mulheres também podemos estar lá, errando e aprendendo. E, quem sabe, tornando o trânsito mais empático e tranquilo no futuro — projeta a instrutora.
Conseguir dirigir muitas vezes é a concretização de um sonho, relata Jessica, a materialização de um desejo por liberdade para ir e vir quando quiser, sem ficar na dependência de um motorista ou de um aplicativo. Segundo a instrutora, boa parte das alunas a procuram porque desenvolveram traumas já nas primeiras tentativas de dirigir, não tiveram instrutores "empáticos e delicados na hora de explicar o funcionamento do carro".
— Elas acabam pegando um trauma mesmo. A agressividade exposta dentro do carro no momento do aprendizado fica marcada profundamente para elas. Já para outras mulheres, é pura insegurança. Elas não dominam o veículo e não ficam seguras para sair dirigindo porque sabem do risco. E muitas se privam de dirigir justamente porque sabem que vão cair nas vias e vão ouvir buzinaço, vão ser xingadas de tudo quanto é coisa e passar dificuldades. Então nem tiram o carro da garagem — afirma Jessica.
Marcha por marcha
O primeiro passo para quem procura o Gurias no Trânsito é a aula experimental, momento em que a instrutora vai até a aluna — em casa, no trabalho, etc — e tem um diálogo de 50 minutos. Nesse tempo, ela explica a metodologia e convida a motorista a dar uma volta com o carro para avaliar o grau de dificuldade que a mulher tem ao volante.
O carro é adaptado: tem pedais tanto para a motorista quanto para a instrutora. As aulas não têm lugar fixo para ocorrer, mas Jessica explica que já mapeou alguns lugares mais tranquilos da Capital e da Região Metropolitana, onde é possível iniciar com calma.
As lições são 100% práticas e começam nos lugares mais calmos, como as ruas de bairros residenciais. Gradualmente, as alunas avançam para o centro das cidades e rodovias movimentadas, como a freeway. Além disso, elas treinam manobras para estacionar o carro, exercitam ir ao posto de combustível para abastecer, trocar pneus e recebem noções básicas de mecânica para manter o veículo em dia.
— Inicio com elas no bairro, foco na dificuldade maior de cada uma, explico o funcionamento de embreagem, acelerador, freio e troca de marchas, que é um ponto em que elas costumam se debater um pouco. Também levo elas para estrada de chão e para lombas, pois a maioria das alunas tem problema com lomba — conta Jessica.
A empresária explica como é a evolução das mulheres que procuram o serviço.
— E quando vejo que estão dominando o veículo, vamos devagarinho para o trânsito. A prática começa no meu carro adaptado, mas aos poucos vamos nos programando para pular para o carro delas, para que se adaptem e já estejam controlando o próprio automóvel quando as aulas encerrarem — detalha a instrutora.
A iniciativa oferece três pacotes diferentes, que aumentam de valor conforme o número de aulas necessário para resolver a dificuldade da motorista. Cada sessão dura 50 minutos, mas é possível emendar duas para ficar praticando por mais tempo, com duração de 1h40min.
Embora não seja psicóloga, Jessica afirma que o cuidado com o emocional das alunas e a manutenção da calma e da tranquilidade dentro do carro são essenciais para que as motoristas evoluam. Margarete, que hoje é ex-aluna após um pacote de 20 aulas, elogia justamente a paciência da instrutora:
— Falei de todos os meus traumas e medos e ela foi muito pacienciosa. Se não fosse assim, eu não teria conseguido. Gradativamente, estou começando a andar sozinha de dia, de noite, sou muito cuidadosa. Ando em horário de movimento, no final do dia, e me sinto segura em pegar o carro e dirigir. É um dia depois do outro se superando — afirma.