
— Não quero mais as pessoas falando de mim. Ninguém tem que falar. Não dei permissão para isso. Pode opinar sobre algumas coisas. Sobre o meu corpo, eu não dei liberdade. Vocês não têm permissão para falar.
Esse trecho, que teve ampla repercussão no mês passado, faz parte de uma entrevista concedida por Paolla Oliveira à revista Marie Claire. Nela, a atriz exige um basta aos comentários sobre sua aparência. O corpo da paulistana está sempre na boca do povo, seja para elogiar ou para despejar hate sobre suas celulites, peso, idade, estar “muito dentro do padrão” ou fora dele.
De forma semelhante, a modelo Yasmin Brunet, que participa do Big Brother Brasil 24, também foi alvo de críticas que chamaram a atenção de telespectadores e internautas para o debate sobre a objetificação do corpo feminino. Na frente das câmeras da casa mais vigiada do país, alguns brothers se sentiram à vontade para opinar que a influenciadora “não para de comer”, “está mais velha, mas é bonita ainda”, “já foi melhor”, e que ela “tem um corpo bonito, mas pode melhorar”.
Os casos envolvendo famosas naturalmente são os que ganham mais repercussão, mas estar na mira do julgamento acerca do seu corpo também acontece com anônimas, desde que o mundo é mundo. São frases que chegam sem convite com potencial para magoar, constranger e abalar aquela autoestima que se trabalhou muito para fortalecer.
E, normalmente, são palavras camufladas que soam como elogio: que mulher nunca sentiu que a fala “Como você emagreceu, está bonita!” esconde um “você estava feia antes...”? Que um “Nossa, como você é linda de rosto!” revela “acho seu corpo feio...”? Ou então que “Uau, você ainda pratica corrida?” disfarça um “você está velha demais para isso”?
Em alusão ao Dia Internacional da Mulher, Donna reuniu especialistas em Psicologia, Psicanálise, Nutrição e Comunicação para discutir e questionar o por que ainda é permitido e naturalizado falar de corpos femininos, os impactos desta prática e como freá-la.
Sob vigília
Falar do corpo feminino sempre foi autorizado porque, em alguma medida, ele não é considerado totalmente privado, explica a psicanalista paulistana Vera Iaconelli:
— É como se fosse, acima de tudo, um bem público do qual todos podem dispor. Essa é a grande questão: o corpo não ser inteiramente da mulher, mas também da sociedade que arbitra o que ela pode fazer ou deixar de fazer.
Há uma série de fatores religiosos, políticos, sociais e morais que se deram ao longo da história e que fizeram com que a aparência e o comportamento da mulher seja até hoje mais vigiado e controlado do que outros, aponta Gabriela Machado Ramos de Almeida, professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da ESPM de São Paulo e coordenadora do grupo de pesquisa Estéticas, Políticas do Corpo e Gêneros da Intercom.
Alguns exemplos são o mito fundador da Virgem Maria – que deu à luz num acontecimento ausente de prática sexual – e a consolidação das mídias no século 20, espaços onde as mulheres se inseriram, mas frequentemente foram mais valorizadas pelo seu físico do que por outros aspectos.
— Este corpo controlado é mais vulnerável com a violência simbólica que é a cobrança pelos padrões de beleza. Ninguém se sente diretamente uma Virgem Maria, mas, no final das contas, esse imaginário ainda paira na hora de julgar a moral do comportamento público feminino. E quando pensamos a partir do século 20, determinados padrões estéticos foram circulando midiaticamente, desenhando um modelo de mulher magra e branca — afirma a pesquisadora.
Em se tratando de Brasil, um país onde culturalmente há um forte culto ao corpo, a cobrança por se encaixar em um padrão estético fica ainda mais violenta, destaca Gabriela – não à toa o país é elencado como recordista em cirurgias plásticas e procedimentos estéticos. Mas as avaliações das pessoas não se restringem às “fora do padrão”, basta ser mulher para ouvir que está demasiadamente magra, gorda, velha, flácida, vulgar, entre outras infinidades de atributos. Tais palavras, esclarece Vera Iaconelli, ajudam a construir um modelo de beleza inalcançável e convencer que a mulher está sempre em falta.
— O que fica de mensagem é que ela, de saída, é imperfeita. Na comparação com o homem que já é completo, afinal seu corpo não está sob julgamento, a mulher está sempre devendo e correndo atrás de compensar algo impossível. E o que é impossível de ser compensado é a sua inferioridade, porque o que está em jogo é justamente a ideia de que o homem é superior à mulher – aponta a autora dos livros Manifesto Antimaternalista (Zahar, 2023) e Criar Filhos no Século XXI (Contexto, 2019)
Sou uma mulher de 50 anos e sei quem eu sou, mas ainda assim fiquei magoada.
JULIA ROBERTS
Atriz falou sobre a repercussão negativa da sua aparência nas redes sociais
Há uma diferença entre o tratamento que é dado aos homens e às mulheres: enquanto eles são vistos na totalidade de suas características, os atributos físicos delas costumam ser os primeiros a serem destacados verbalmente, expõe Vera. Isso ajuda a sedimentar a noção de que o valor da mulher está principalmente no corpo.
— Comentar sobre a aparência dos outros, elogiar, criticar é algo que sempre fizemos, mas a forma como isso é feito entre mulheres e homens é totalmente diferente. George Clooney, por exemplo, é considerado bonito, mesmo envelhecendo, e poucos comentários fazem sobre sua aparência. Em raras entrevistas se questiona por que ele parou de tingir o cabelo, se ganhou ou perdeu peso. Já com uma mulher, essas perguntas vêm antes de tudo.
O mundo virtual
Em um rápido clique no botão de “publicar”, dá para comentar sem jamais ser identificado e responsabilizado por isso, o que contribui para que as pessoas se sintam ainda mais confortáveis para falarem o que querem, destacam as entrevistadas, doa a quem doer. Por conta da internet, julgamentos que poucas décadas atrás eram feitos somente no âmbito privado agora alcançam o público de um jeito inédito.
— O borramento entre o público privado que as redes sociais acabam fazendo é uma questão muito própria do nosso tempo. Na medida em que as pessoas usam as plataformas, a relação entre a opinião e exposição fica muito bagunçada, as pessoas se sentem autorizadas a ampliar a vigilância sobre as mulheres.
Razões para domar a língua ferina
Não se sabe ao certo como surgiu o hábito de depreciar corpos, mas não há dúvida quanto aos efeitos negativos na autoestima. Conforme a nutricionista e psicanalista Natália Vignoli, mesmo mulheres que se acham bonitas podem se convencer do contrário por estarem inseridas em uma sociedade que insiste em lhes dizer que seu físico é inadequado. É a chamada teoria da “dissonância cognitiva”:
— É como olhar para uma parede verde, mas está todo mundo dizendo que é azul. Uma hora você acaba pensando “Bom, melhor eu achar que é azul, assim não fico tão desconfortável neste meio social”. Ou seja, se você acredita que seu corpo é bonito, mas faz parte de uma sociedade onde o padrão estético está muito distante dele, e ainda recebe mensagens pejorativas, você começa a duvidar da sua própria aparência.
Há muito conteúdo em torno de autoaceitação e empoderamento que está produzindo fissuras neste modo de enquadrar os corpos femininos.
GABRIELA MACHADO RAMOS
Pesquisadora
A língua ferina não faz bem a ninguém: pode provocar ansiedade, depressão e problemas relacionados com a autoimagem para quem faz o comentário, é alvo dele ou escuta de forma passiva.
Segundo Natália, esta é uma das descobertas feitas por pesquisadores que investigam o "fat talk", termo que se refere ao ato de falar de forma depreciativa sobre corpo, comida e aparência de alguém:
— Se descobriu que participar desses comentários, ativamente ou passivamente, piora diversos aspectos psicológicos da pessoa, principalmente da mulher. Há piora da autoconfiança, da autoestima, maior risco para desenvolvimento de transtorno alimentar e piora da insatisfação corporal.
Saturadas de desconversar, dar um sorrisinho amarelo e fingir que não ouviram uma observação indesejada sobre a sua aparência, algumas mulheres estão compondo um coro de enfrentamento que diz “Este corpo é meu e não cabe a você falar sobre ele”.
E se o assunto está em pauta hoje, argumenta a pesquisadora Gabriela Machado Ramos de Almeida, é em parte por causa do ativismo online e do avanço de movimentos feministas que trabalham para que a mulher possa apropriar-se do próprio corpo.
— Uma agenda feminista nas redes sociais tem tentado romper com o controle sobre os corpos das mulheres, e em alguma medida tem conseguido. Há muito conteúdo em torno de autoaceitação e empoderamento que está produzindo fissuras neste modo de enquadrar os corpos femininos.
Reaja!
Recentemente voltou a circular na internet um áudio em que Julia Roberts fala sobre a repercussão negativa de uma foto publicada no Instagram por sua sobrinha, a também atriz Emma Roberts – uma imagem simples, onde as duas aparecem sentadas à mesa, jogando cartas. O trecho é de uma entrevista para revista americana Harper’s Bazaar em 2018:
— Emma tinha dormido aqui, nós nos levantamos e estávamos tomando chá, jogando cartas e tendo uma linda manhã. (...) Dias depois ela postou a foto e o número de pessoas que se sentiram absolutamente obrigadas a falar sobre como eu estava “horrorosa” na foto – que não estou “envelhecendo bem”, que “pareço um homem” e “por que ela postaria uma foto como essa quando estou tão horrível?”. (...) E fiquei espantada com o que isso me fez sentir. Sou uma mulher de 50 anos e sei quem eu sou, mas ainda assim fiquei magoada.
Quando começamos a reconhecer que é um exercício de poder e tiramos do outro o poder de dizer quem eu sou, a coisa fica mais fácil.
VERA IACONELLI
Psicanalista
Mesmo a mais emocionalmente forte das mulheres pode se sentir desconfortável e ferida ao ouvir críticas sobre seu corpo, mas há algumas formas de se proteger, observa a psicóloga e doutora em medicina Carolina Villanova Quiroga. A mais importante delas é ter uma autoimagem e um autoconceito – a maneira como o indivíduo se enxerga e se define – fortalecidos, com a ajuda de um profissional em saúde mental, se necessário.
— Assim vou ter pensamentos e emoções acionados pela opinião alheia, mas vai ser de uma maneira mais restrita, menos intensa. O comentário não será capaz de controlar o meu comportamento. Um dos maiores presentes que a pessoa pode se dar é construir uma relação saudável com a sua autoimagem e conseguir fazer com que essa percepção da estética não dependa diretamente da opinião alheia – recomenda Carolina.
Partir para o enfrentamento também é uma alternativa. Segundo a psicóloga, se as opiniões de amigos, familiares e colegas estão passando dos limites, é importante mandar o recado de que isso não está certo, de forma a tentar inibir esse comportamento.
— Não colocar limites também é ser conivente, mesmo que inconscientemente, com o que está sendo feito. Posso começar estabelecendo limites de forma sutil, “Ah, não fala assim, não curti esse comentário”, ou então mudar o rumo da conversa “Acho melhor a gente não falar disso, vamos falar de outra coisa”. Outra opção é colocar os limites de forma clara e direta, “Já te disse algumas vezes que não curto esse tipo de comentário, esperando que você percebesse, mas agora vou ser mais clara. Eu não gosto que você fale do meu corpo, não gosto que fale da minha idade, etc”.
Para Vera Iaconelli, uma das soluções é compreender que, quando uma pessoa fala sobre a aparência da mulher, na verdade o que está tentando fazer é convencê-la de que ocupa um lugar de superioridade – e que, do alto desse pedestal, tem o direito de arbitrar sobre a mulher e reduzi-la à sua aparência. Munida desse conhecimento, fica mais fácil colocar as coisas em perspectiva:
— É mais da ordem do compreender o que está em jogo para sair dele do que simplesmente fingir que não ouviu. É muito desagradável ser criticada, ser vista como um pedaço de carne. Mas quando começamos a reconhecer que é um exercício de poder, não uma questão de achar ou não bonita ou feia, e quando tiramos do outro o poder de dizer quem eu sou, a coisa fica mais fácil. Não resolve 100%, porque é sempre uma violência, mas ajuda a relativizar.