Imagine três amigas em uma sala falando de qualquer que seja o assunto: a primeira começa a frase, a segunda já entra no embalo para complementar, e a terceira faz questão de concluir sem deixar o ritmo se perder. É nessa conversa meio entrecortada que aparece a intimidade que existe entre a costureira Ildina Müller dos Santos, 73 anos, a dona de casa Noemia Moura da Silva, 60, e a psiquiatra aposentada Tânia Bonini, 73. Também dá para notar a conexão a cada vez que a mão de uma pousa no ombro da vizinha cuja voz embargou. São gestos que não deixam dúvidas de que elas vivem “uma irmandade”, como Tânia define a relação. Um laço de amor e amparo atado há cerca de 25 anos, quando as três receberam o diagnóstico de câncer de mama.
O trio já apareceu nas páginas do caderno Vida, de Zero Hora, nos anos 2000 e 2003: primeiro para falar de prevenção e de luta, e depois para celebrar a vitória contra a doença. Desta vez, elas retornam às nossas páginas marcando o início do Outubro Rosa – mês de conscientização sobre o câncer de mama – e fazendo um apanhado das suas jornadas até aqui. Falam de amor à vida, de como mantiveram contato e também do desafio mais recente: Ildina está novamente com câncer, uma recidiva na mesma mama direita que já havia operado e tratado em 1998.
— Nós e a Ildina somos uma só, então, faz bem estarmos juntas presencialmente — afirma Tânia.
E a costureira, sentada ao lado direito da amiga, concorda:
— Ah, se faz. Minha angústia está passando, agora que estou com o meu pessoal de novo.
À sua frente, Noêmia:
— É isso, Ildina. A gente tem que seguir em frente, pensar que amanhã é outro dia e que vai dar tudo certo. Já deu uma vez e vai dar de novo.
Os caminhos das três se encontraram no final dos anos 1990, no Hospital Conceição, em Porto Alegre. Elas se integraram ao Grupo de Apoio da Mama, coletivo que todas as quintas-feiras promove reuniões entre pacientes, voluntárias e médicos para dar suporte emocional a quem está doente. O grupo é coordenado por José Luiz Pedrini, chefe do serviço de mastologia da instituição.
— No grupo somos todas iguais. Éramos voluntárias e visitávamos quem recebia o diagnóstico, quem havia sido operada e quem estava muito triste. E todas são sempre convidadas a continuar visitando, porque é muito importante escutar de alguém que já passou pelo câncer de mama um “estou bem, estou viva!”. Vem muita esperança daí — lembra Tânia, que hoje mora em Santa Catarina, mas vem à Capital com frequência para participar dos eventos do grupo.
Começo turbulento
Pioneira do trio, Noemia foi acolhida pelo grupo em 1997, após duas tentativas de tirar a própria vida, motivadas pelo desespero. Tinha 35 anos quando percebeu um nódulo entre a mama e a axila, semelhante a uma “cabeça de alfinete”, mas encontrou nos postos de saúde uma resistência para ser encaminhada à mamografia, dado que o exame costuma ser recomendado apenas após os 40. Quando enfim conseguiu fazer, constatou o problema, o que resultou em uma mastectomia radical.
— Saí da cirurgia só com um pedacinho da mama. Quando acordei, foi um terror. Fiquei dias prostrada dentro de casa, em depressão. Engordei, fiquei inchada, queria morrer. Mas encontrei força — conta a dona de casa.
Noemia revela que só se reconfortou vendo a sala do grupo repleta de pessoas compartilhando da sua dor e lhe incentivando a superar. Poucos anos depois da cirurgia fez outra operação, para reconstruir o seio. Também deixou de ser paciente para se tornar voluntária, dedicando-se ao coletivo por mais de 14 anos. E estava lá para receber Ildina.
— Eu tinha muito medo de me tocar porque todas as minhas irmãs faleceram dessa doença. Pensava: “se um dia quiser aparecer, que apareça”. E apareceu. Precisei muito do apoio delas para enfrentar — lembra a costureira.
A terceira chegou ao grupo em fúria, xingando Deus e o mundo. Tânia atuava como médica e relata que teve dificuldade para aceitar ser colocada “do outro lado” – o da paciente. E, como já havia perdido um de seus três filhos e o marido, também se sentiu injustiçada.
— “Não preciso de vocês, sou médica, eu cuido de vocês!”, ela dizia. Nunca esqueço — comenta Ildina, às gargalhadas.
Noemia relembra:
— A Tânia chamou nós todas de miseráveis, porque ela era uma psiquiatra! Veio toda valentona, mas acabou tornando-se nossa “mãe brasileira”.
Tânia justifica e fala dos sentimentos de negação.
— É que estar com câncer te dá uma raiva enorme! O chão sai de baixo de ti. Sonhava que meus exames tinham dado negativo, de tanto que rejeitava a ideia. E ficar ouvindo que “Deus iria me ajudar” não dava. Dizia, “se houvesse Deus, ele iria me tirar marido, filho e agora ainda me dar um câncer? Não tem Deus coisa nenhuma! — recorda.
A resignação e a coragem vieram com o tempo e com o apoio das amigas. Ela precisou retirar as duas mamas e fez uma reconstrução utilizando gordura e músculos da barriga. Hoje caminha na praia “de bustiê e shortinho e ninguém tem nada a ver com isso”. Entre muitas lágrimas, cirurgias, golpes à autoestima e dezenas de sessões de radioterapia, venceram.
— Elas foram meu apoio, alento, me deram força e espaço para chorar. Hoje, só quero saber de sorrir e de levar a vida na maciota — diz Noemia.
Estou contigo e não largo
Vinte e cinco anos não são 25 dias e, com o passar do tempo, as amigas foram se afastando do Grupo da Mama, dando espaço a novas voluntárias. Mas o companheirismo foi expandido para outras áreas: Noemia é a figura que manda mensagens diariamente, mantendo as demais a par do que acontece na vida de cada uma. Já Ildina faz vestidos e terninhos para todas. Durante anos, Tânia prestou atendimento domiciliar ao marido de Ildina, hoje falecido. A costureira chama a psiquiatra de “anjinho”.
Por mais que o começo da amizade tenha sido em meio à luta, o astral do trio é lá em cima: elas garantem que têm “fome de vida”. Quando a costureira descobriu que o câncer voltou, em 2021, sua rede de apoio partiu para a ação.
— Para mim, essas mulheres são tudo. Quando falei que estava com câncer, mas que desta vez não estava junto do nosso grupo, Noemia foi atrás do doutor Pedrini e ele me disse para ir ao Conceição, que eu seria atendida. Já a Tânia me ligou, ficou falando um tempo comigo à noite. Elas são um gigante de um apoio.
A cirurgia está marcada para 11 de novembro, mas deve ser antecipada, já que a filha de Ildina, Manuela Müller, agilizou os processos viabilizando a realização de exames da mãe na rede privada.
— Estou confiante agora que voltei para minha equipe. Confio que vai dar certo como deu da outra vez. Na matéria de 2003, falei que queria viver para ter minha loja e hoje ela está aí. Tenho mais coisas para realizar — sublinha Ildina.
Tânia e Noemia afirmam que ver a amiga passar por essa barra novamente resgata sensações de 25 anos atrás. Porém, também retorna o espírito que as manteve de pé.
— O recado que dou à minha amiga é que ela deve ter força e coragem. E a certeza de que estamos aqui para o que der e vier. Quero estar com ela, acompanhá-la no hospital. É isso que posso e vou fazer — projeta Noemia.
Avanços em 25 anos
O tratamento das três não teve quimioterapia nem queda de cabelo, mas envolveu muitas sessões de radioterapia e a remoção de gânglios linfáticos das axilas, o que provoca o inchaço no braço (uma das principais queixas das entrevistadas). Este foi um dos âmbitos em que a ciência evoluiu nas últimas décadas, de acordo com o médico José Luiz Pedrini.
— Realmente, as mulheres ficavam com o braço inchado. Hoje, não se tira mais todos os gânglios da axila, pois existe o linfonodo sentinela, que reduziu a quase zero esse problema — explica.
O avanço também se deu na reconstrução. De acordo com Pedrini, ele e o Grupo de Apoio da Mama ajudaram a elaborar, em 1999, a lei que determina que mulheres que “sofreram mutilação total ou parcial da mama decorrente do tratamento de câncer têm direito à cirurgia plástica reconstrutiva”. Isso vale tanto para o Sistema Único de Saúde (SUS) quanto para os planos privados. Com o tempo, foram surgindo outras normas que complementaram o serviço: está previsto que o procedimento seja feito no mesmo dia da cirurgia da retirada da mama quando existirem condições técnicas.
— Há dois tipos de reconstrução, a autóloga, que utiliza tecidos do próprio indivíduo, e a com prótese de silicone, a que mais utilizamos. Qualquer que seja a técnica, o importante é jamais deixar a mulher sem mama. A escolha e os direitos são dela.
Um ponto positivo na visão de Ildina para o contexto atual é que, quando for operada, poderá enfim colocar próteses de silicone nas duas mamas, deixando-as simétricas. Conforme o mastologista, esta é uma peça-chave para o bem-estar e a autoestima das pacientes.