Ainda está por vir o tempo em que grandes conquistas femininas, e ainda mais por mulheres negras, deixem de ser marcos históricos. No universo particular de Iris Helena Medeiros Nogueira, construído desde a infância em Pelotas, onde nasceu em 16 de junho de 1957, e em toda a sua trajetória profissional de 35 anos, esse tempo já é. Sempre foi.
Às vésperas da posse como presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), em 1º de fevereiro, a desembargadora tem consciência de seu pioneirismo e de sua representatividade como primeira mulher e primeira negra da história gaúcha à frente de uma área tão importante.
O Judiciário era, até então, o único dos três poderes a nunca ter sido comandado por uma mulher. E por isso Iris Helena responde a todas as questões, repetidamente feitas, envolvendo gênero e raça, com o cuidado e a reverência que o tema exige. Porém, afirma-se uma mulher que jamais enfrentou qualquer constrangimento ou dificuldade em um universo predominantemente masculino, mesmo nos anos 1980, quando iniciou sua carreira. Afirma-se uma mulher de origem negra que nunca sofreu preconceito.
— Se alguém teve, em relação a mim, alguma atitude discriminatória, eu sequer percebi — garante ela, em entrevista por telefone, numa brecha da agenda lotada por compromissos pelo Estado.
Cansaço? A voz não transparece. Ao contrário: soa enérgica, limpa.
— Falo demais — justifica-se. — Me considero uma pessoa tímida. Mas os desafios em cargos e funções me fizeram e me fazem interagir com muitas pessoas e, evidentemente, me manifestar. Então, mudei bastante. Sou um ser essencialmente social.
Primogênita do casal Orlando Pinto Nogueira Neto, contador e advogado (“um exemplo”, pontua), e Maria Cândida, professora “dedicadíssima”, a magistrada tem três irmãos homens – dois deles ainda moradores de Pelotas, o que a faz viajar para a região com regularidade.
Solteira e sem filhos, a presidente eleita do TJRS é muito ligada à família. Está a par da vida dos seis sobrinhos como se filhos fossem – dois deles também escolheram o Direito – e dos dois sobrinhos-netos.
— A família não é muito grande, meus pais já faleceram. Mas família é nosso abrigo e alicerce. E eu e meus irmãos sempre mantivemos essa chama acesa — diz.
Em tudo o que resolvi fazer, faculdade, carreira, a minha preocupação foi sempre me qualificar para conseguir o meu objetivo
IRIS HELENA MEDEIROS NOGUEIRA
primeira mulher a presidir o TJRS
A influência dos familiares na carreira é nítida. Não só pelo fato de o pai ter sido advogado e dado a ela, no escritório dele, o primeiro emprego, aos 16 anos. A mãe, professora, tem igual peso. Tanto por fazer com que admirasse tal profissão, a ponto de exercê-la, associada às funções de magistrada (Iris Helena deu aulas na Escola Superior da Magistratura por 11 anos), quanto pela presença significativa dos avós maternos na sua criação.
Ela conta que o avô Manuel Antônio Medeiros, alfaiate, e a avó, Diva, costureira, eram referências na família quando alguém precisava de um aconselhamento, sempre com uma postura conciliadora e justa:
— Digo que sou abençoada. Aportei numa família de pessoas muito dignas, e isso é motivo de orgulho.
A capacidade conciliatória, necessária à carreira, teria sido herdada, então? Ela acredita que é uma costura, tanto do que a família a ensinou e de pais, avós, tios como exemplos e modelos em suas atitudes, quanto da sua própria personalidade inata. Iris conta que, desde muito jovem, antes de emitir qualquer juízo de valor sobre um assunto, precisava conhecer o início, o meio e o fim, ouvir as partes.
— Meus amigos me viam assim, com uma postura conciliatória. Sempre tive um policiamento antes de emitir opiniões, para que o juízo de valor fosse alicerçado, digamos, com elementos probatórios — recorda.
Não foi, portanto, uma surpresa a escolha pelo curso de Ciências Jurídicas e Sociais, concluído na Universidade Federal de Pelotas em 1981. Aluna aplicada, sempre soube onde gostaria de chegar.
— Em tudo o que resolvi fazer, faculdade, carreira, a minha preocupação foi sempre me qualificar para conseguir o meu objetivo — diz.
Às vésperas da posse, Íris parece feliz, segura e muito disposta. Ter seu nome, seu mandato e sua equipe associados inteira e unicamente à competência e à capacidade de realização parece ser seu mais obstinado foco. E assim ser lembrada no futuro, quando finalmente o tempo que já é, no universo particular de Iris Helena, coincidir com o contexto histórico em que mulheres negras em posição de destaque não sejam mais marcos históricos.
Fora seus méritos, a que atribui a vitória de uma mulher na eleição para a presidência do TJRS se dar só agora? Não deve ter sido a primeira tentativa de uma mulher…
Não foi. Foi a terceira. A base disso tudo é a história que nós estamos escrevendo e testemunhando dentro do Poder Judiciário. O tempo, a jurisdição, o nosso trabalho, a minha participação na administração – tive alguns cargos junto à administração do TJRS, na corregedoria-geral, na associação de classe. Fui me dando a conhecer com o decurso do tempo. É algo que se forma naturalmente, a liderança. É uma construção que o tempo traz. Que nós fizemos. E, claro, por todos os movimentos mundiais que já estão colocando as mulheres em patamares mais elevados em instituições, poderes e na iniciativa privada. Há um amadurecimento da trajetória da mulher de forma geral.
A senhora já afirmou que o fato de ser mulher, num universo tão masculino, e ser de origem negra, não criaram desafios maiores.
É uma questão de proceder. Durante toda a minha vida, nunca fui focada nisso. Para mim, é tão natural ser mulher, tão natural ser negra, é uma forma de encarar a vida. Uma filosofia de vida mais leve, suave. No nosso núcleo familiar, nunca fomos levados a “faça assim ou faça assado porque é mulher”, “faça diferente porque você é preto”. Essa é uma questão que nunca permeou meus pensamentos, minhas ideias, minhas decisões. Tudo o que resolvi fazer, a faculdade, a carreira, a minha preocupação era me qualificar para conseguir meu objetivo. Se alguém teve, em relação a mim, alguma atitude discriminatória, sequer percebi.
Sua equipe para o biênio 2022/2023 já está formada?
Quase toda. Temos toda a administração eleita: presidente, primeiro, segundo e terceiro vices e corregedor-geral. Na minha assessoria direta, são dois homens e duas mulheres. Na administração, duas mulheres e três homens. Há um equilíbrio. As escolhas, no entanto, são feitas pela capacidade, pela formação, pela adequação de cada um às tarefas que desenvolverá.
É evidente sua dedicação intensa ao Judiciário. Mas e fora dele, o que gosta de fazer?
Sempre tive presente que há vida lá fora e quem presta serviço no Judiciário, quem está lá julgando, é uma pessoa, é gente. E esse ser humano, essa Iris Helena precisa ser alimentada, primeiro com bons valores, vindos de casa, mas também de carinho, proteção, vida, lazer. E isso tenho junto à família e aos amigos. Tenho facilidade para fazer amizades que se perpetuam. Em todas as comarcas por que passei, deixei verdadeiros amigos com os quais mantenho contato. Gosto muito de viajar pelo mundo, com amigos. As viagens me enriquecem. A pandemia trancou um pouco isso.
Para onde foi a sua última viagem?
Foi para o Peru e a Colômbia, em 2018, com um grupo de amigos. Também visito bastante a serra gaúcha, tenho imóvel lá. E gosto muito de cuidar do corpo e da saúde com caminhadas, pilates, treinamento funcional. Me fazem muito bem. Gosto de caminhar na orla do Guaíba.
O fato de seu pai ter sido advogado influenciou sua escolha pelo Direito?
Essa inclinação de buscar a verdade, que é sempre uma só, decidir de forma justa, vem desde muito pequena, no relacionamento com amiguinhos. Buscar ajudar a resolver conflitos, solucionar desavenças, desde sempre. Mas meu pai influenciou, sim. Primeiro porque ele colou grau quando eu tinha 13 anos. Ele já era contador e foi à universidade buscar outra profissão. Largou a segurança de um emprego e foi atuar na iniciativa privada. Isso me marcou. Meu pai foi um exemplo de integridade, dedicação, de respeito ao Direito, à Justiça e aos clientes.
A Justiça é associada a uma certa frieza. Seu temperamento mais emotivo tornou os desafios mais fáceis ou mais difíceis ao longo desses anos?
Eu mudei. No início da carreira, era bem mais rigorosa, fechada. Talvez também por ser mulher, vinte e poucos anos, assumindo no interior do Estado... E estive entre as primeiras mulheres lá, não eram muitas em 1985. O tempo e o amadurecimento deram uma flexibilizada. Sou tida, no entanto, como uma julgadora rigorosa. Faço a minha decisão, mas aprendi que posso fazer isso com um sorriso nos lábios. Não preciso fazer uma cara feia. Sempre deixando evidente o respeito a mim e ao meu próximo. Posso dizer um trecho, não sei quem é o autor, mas que acho lindo?
Faço a minha decisão, mas aprendi que posso fazer isso com um sorriso nos lábios. Não preciso fazer uma cara feia. Sempre deixando evidente o respeito a mim e ao meu próximo.
IRIS HELENA MEDEIROS NOGUEIRA
primeira mulher a presidir o TJRS
Claro.
Eu amo a mulher que me tornei, porque lutei para ser ela. Que possamos todas nós e todos nós continuar lutando. Que nossa luta seja coletiva por uma sociedade mais justa, menos desigual e por mais empatia entre as pessoas. Que sigamos julgando, condenando, por vezes contrariando interesses, porque se duas partes disputam uma maçã inteira, tenho de decidir quem tem direito à maçã inteira, e um dos lados vai perder e ficar insatisfeito. Mas isso não significa perder o respeito e a empatia. Significa que é nosso trabalho e vamos fazê-lo de forma mais leve, mas ele inteiro, completo, justo, de acordo com a lei.
Os temas prioritários de Iris Helena na presidência do TJRS
Aproximar o Judiciário da comunidade
“Queremos que o povo conheça o seu Judiciário, conheça o trabalho de seus juízes e servidores. Que possa, de forma imparcial, ter um juízo de valor do nosso trabalho. Porque nos entristece ver que a opinião pública nos julga de uma forma por vezes, digamos, não tão justa. Precisamos mostrar quem realmente somos, o que fazemos. O trabalho do magistrado é isolado, em 95% dos casos é ali, no nosso gabinete, com o nosso computador, com os nossos servidores, e não damos publicidade. Evidentemente, os números dos julgamentos do nosso tribunal, do nosso poder judiciário em 1º e 2º grau estão publicados, e impressionam. Nós somos destaques junto ao Conselho Nacional de Justiça e até junto a tribunais superiores em produtividade. Para essa aproximação, planejamos ações junto à comunidade, que o Judiciário já fez muito, levando a Justiça para a rua, atendendo as pessoas, dando informação de processos, facultando ao cidadão serviços, nos aproximando dele.”
Digitalização total dos processos ainda em 2022
“É o maior projeto de digitalização do judiciário no país, porque temos em andamento 5 milhões e meio de processos, aproximadamente, que estão sendo digitalizados. Atualmente, estamos com em torno de 55% da meta atingida. Cumprir essa meta significa amplos investimentos no setor da Justiça eletrônica. Desejamos investir, e muito, para que esse acesso virtual, de público interno e público externo, seja mais fácil e melhor. Agora é um clique, um toque e ce-le-ri-da-de na prestação jurisdicional. Isso encanta a todos nós.”