Grávida de seu primeiro filho, Letícia Peixoto, 33 anos, planejou a chegada de Samuel em um parto natural e hospitalar. A maternidade, o centro obstétrico e toda a estrutura habitual de uma instituição de saúde se desenhava na cabeça da advogada ao imaginar o nascimento de seu bebê. Pelo menos esse era o plano traçado até a chegada do coronavírus no Brasil. A pandemia forçou uma mudança de rumos na reta final da gravidez: com medo de ir a um hospital pelo risco de contaminação, ela e o marido concordaram que a melhor opção seria um parto domiciliar, no conforto de casa.
– Tivemos uma sensação de impotência muito grande com a pandemia. Foi um momento de medo e tensão, pois não sabíamos como estariam as coisas quando chegasse a hora do nosso filho nascer. Resolvemos montar o plano B – lembra Letícia.
No dia 5 de maio, Samuel nasceu no lar da família, em Gravataí, rodeado por uma equipe de enfermeiras obstetras. O casal não se arrepende da decisão e acredita que foi o caminho mais prudente, defende a mãe:
– Nos sentimos muito mais seguros longe do coronavírus. A pandemia nos deu um susto e nos preocupou muito, mas também nos trouxe uma oportunidade de viver uma experiência única e transformadora, que é o parto domiciliar.
Assim como Letícia, outras famílias passaram a cogitar um parto planejado em casa para driblar a ida a um hospital e não aumentar os riscos de contaminação para mãe e bebê. Duas das principais equipes de Porto Alegre que realizam o procedimento nas residências garantem: o número de atendimentos dobrou desde o início da pandemia, e a procura por informações explodiu nos últimos dois meses.
Grazy Alós, enfermeira obstetra da Partería, conta que a média de partos da equipe girava em torno de dois por mês. Apenas em abril, foram 10 atendimentos, seguidos por oito em maio.
O aumento expressivo é confirmado também por Ana Terra Pereira, enfermeira obstetra da Nascente, que destaca, além da alta de 50% no número de partos no período, um boom de mulheres pedindo informações sobre o procedimento. Mais de 10 grávidas ligam todos os dias em busca de detalhes sobre o nascimento em domicílio – antes do coronavírus, eram cerca de três por semana.
– Hoje, um dos lugares mais contaminados, com mais chance de se contrair o coronavírus, é o hospital. A mulher que tem o bebê em casa não está se expondo a mais riscos no parto, e a mulher que tem o bebê no hospital não está prevenindo riscos, há estudos que comprovam isso. Obviamente que o hospital tem mais recursos, mas, quase todas as intercorrências que podem acontecer, damos conta de atender no domicílio – avalia a enfermeira Grazy.
A coordenadora geral da Associação de Doulas do Rio Grande do Sul, Natália Wulff Fetter, também identifica um interesse maior pelo parto domiciliar na pandemia. A procura pelos serviços das doulas – que trabalham na educação perinatal e no apoio à mãe – não registrou um aumento considerável, porém, grande parte das mulheres que buscaram a doulagem demonstrou interesse em ter o bebê em casa.
– A doula pode acompanhar partos em casa e no hospital, mas, com o coronavírus, não estamos conseguindo entrar nas instituições de saúde. Já nos partos domiciliares, as doulas estão atendendo normalmente. Não creio que a maioria das mulheres acabaram optando por ter o bebê no lar de fato, mas uma fatia muito maior está cogitando a possibilidade por causa do momento que estamos vivendo – explica Natália.
Os pré-requisitos
No Brasil, 98% dos nascimentos de crianças ocorrem dentro de hospitais, segundo dados do Ministério da Saúde. O parto domiciliar planejado não é um serviço oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), ou seja, é feito apenas de forma particular.
Para ter o bebê em casa, é preciso preencher alguns pré-requisitos, como uma gestação de baixo risco, sem diabetes, pressão alta e uso de medicamentos controlados, por exemplo. É necessário que o bebê esteja em posição adequada para o parto normal (com a cabeça para baixo), e a gestação precisa ter, no mínimo, 37 semanas.
Com relação à casa, a única exigência é de que esteja a cerca de 20 minutos de um hospital.
– Se essa mulher ou o bebê apresentam alguma alteração, a gente tem todo o recurso para prestar o primeiro suporte. Mas, se precisam de um suporte de maior complexidade, é feita a transferência imediatamente para o hospital – explica a enfermeira obstetra Ana. – O ideal é ter tempo para organizar o parto domiciliar porque precisa de estudo, que a família esteja bem ciente de benefícios e riscos. Existe uma necessidade de preparado emocional e físico. Mas, se a mulher nos procurar no fim da gestação, não é um impeditivo.
Escolha controversa
A opção pelo parto domiciliar é um direito da mulher, entretanto, o tema gera embates entre entidades médicas e de enfermagem no país. Estudos nacionais são raros, e há publicações estrangeiras que apresentam resultados divergentes.
O Conselho Federal de Medicina lança mão de dados que apontam uma mortalidade neonatal duas vezes maior em nascimentos em casa, como um artigo publicado no American Journal of Obstetrics and Gynecology. Já os defensores do parto domiciliar também se baseiam em pesquisas para afirmar que não há maiores chances de morte perinatal ou neonatal em partos em casa – entre os estudos que vão por esta linha está um conduzido pela canadense Universidade McMaster e publicado pela revista The Lancet's EClinicalMedicine.
No Rio Grande do Sul, as equipes de parto domiciliar são formadas basicamente por enfermeiras obstetras, explica Grazy, da Partería:
– Respondemos ao nosso conselho (Conselho Regional de Enfermagem, o Coren-RS) e temos respaldo para atender em qualquer lugar, hospital, casa de parto e domicílio. Precisamos oferecer outros lugares para esse nascimento, como na Europa, onde a mulher pode ter o bebê na casa de parto do seu bairro. É o movimento do parto extrahospitalar. Creio que a pandemia nos ajudou a repensar essa situação.
O Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers) editou uma resolução sobre o tema em 2015 e se posiciona contra a realização de partos em casa. Presidente do Cremers, Carlos Isaia Filho credita o possível crescimento da busca por partos domiciliares na pandemia a uma avaliação equivocada sobre riscos.
– Acho uma pena esse movimento. Porque uma grávida está deixando de usar uma estrutura que já existe, de maternidade, de neonatologista, de atendimento, de obstetra. Ela não vai ter esses recursos se acontecer alguma eventualidade. O médico que faz um parto em casa está cometendo um ilícito ético. Se for denunciado, vai ser julgado por isso – alerta Isaia Filho.
Já Marcelo Matias, presidente do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers), refuta a ideia de não ir ao hospital para dar à luz em razão do risco de contágio por covid-19. Ele explica que, apesar das puérperas serem consideradas grupo de risco e das grávidas aspirarem cuidados redobrados, as maternidades são vistas como lugares seguros no ambiente hospitalar:
– Não tivemos aumento expressivo de risco de doença ou infecção dentro das maternidades no Estado, em bebês ou mulheres. Posso ter o sentimento de que há um aumento de risco por estar dentro do hospital, só que, se tratando de dados objetivos, o cenário é outro. A mulher pode fazer o parto onde quiser, com quem ela quiser. Desde que ela saiba que está aumentando a chance de mortalidade. Ela pode fazer essa escolha, e pode ser por mil razões, mas, em cima da justificativa da covid-19, não tem comprovação científica.