Depois de 15 anos de trabalho, a fonoaudióloga Kely Carvalho, de São Paulo, deparou com o desafio de induzir a produção de leite em uma paciente cuja esposa estava grávida. Consultora pelo Conselho Internacional de Avaliação de Consultores em Lactação, Kely atendeu, no ano passado, a educadora Marcela Tiboni, que desejava amamentar os gêmeos gestados pela sua esposa, Melanie Graille.
O protocolo escolhido por Kely, em parceria com a ginecologista obstetra Ana Thais Vargas, é um dos mais completos: combina o uso de hormônios, galactogogos (medicamentos cujo efeito colateral é o aumento de prolactina, hormônio responsável pela produção do leite) e estimulação mecânica das mamas antes do bebê nascer. Marcela, que até hoje divide a amamentação dos gêmeos de 10 meses com Melanie, usou - e ainda usa - o mecanismo de relactação. Por esse processo, é oferecida fórmula infantil por meio de uma pequena sonda colocada externamente no peito da mãe para que o bebê abocanhe o seio junto. Assim, pelo movimento de sucção, o mecanismo também ajuda a manter a produção natural do leite.
Em entrevista à Donna, a consultora fala mais sobre este e outros protocolos possíveis, as diferenças nos casos de adoção e os desafios de assegurar que essas mães consigam amamentar seus filhos ainda no hospital, já que muitos casos acabam sendo considerados amamentação cruzada, quando uma mulher dá o peito a crianças que não são suas filhas biológicas. A prática não é recomendada pela Organização Mundial da Saúde.
Por que é importante combinar o uso de hormônios com o estímulo mecânico das mamas?
O protocolo de indução em que se usa hormônios, galactogogos, fitoterápicos e uso de bomba é o que tem descrito na literatura como de maior “sucesso”, entre aspas mesmo, porque, em amamentação, tem uma variação grande do que é sucesso. O protocolo que usa todos esses recursos é o mais descrito em termos de volume de leite e mulheres que conseguiram amamentar, mas não é o único. Tem protocolos que recomendam colocar o bebê no peito e estimular com a bomba, tem só com fitoterápicos, tem protocolos que não usam hormônios... Até porque vai depender de cada situação. Se uma mulher chega já com um bebê nos braços, talvez eu não tenha tempo para fazer o protocolo inteiro. Se há risco com o uso dos hormônios ou galactogogos, eu não vou poder usá-los. O processo completo tem contraindicação e todo processo precisa ser seguro. Hoje minha opção e da Ana Thais (Vargas, ginecologista obstetra de Marcela Tiboni), minha parceira de trabalho, é usar o protocolo inteiro porque é o que a literatura aponta um melhor resultado.
Com a indução, é possível produzir leite no mesmo volume que uma mãe biológica produz?
O processo de produção de leite não é um processo garantido em termos de volume, de quantidade de leite. Mesmo as que não adotam, como no caso de casais de mulheres em que uma delas engravida, talvez tenha que entrar com relactação (uso de fórmula infantil via sonda) no começo também. Temos que lembrar que (nos casos de casais de lésbicas) há uma outra mãe que, se não tiver nenhum indicador de risco para a amamentação, vai estar com sua capacidade plena de produção de leite. Isso pode garantir alimentação apenas com leite materno até a produção da mãe que induziu se estabelecer.
É possível falar em uma taxa de sucesso entre as mulheres que fazem todo o protocolo de indução de produção de leite, considerando sucesso independentemente de volume?
Meu trabalho nunca é focado na quantidade de leite porque a amamentação é uma relação. Tem a ver também com a maneira de se vincular com aquela criança.
KELY CARVALHO
Consultora de amamentação
Eu posso falar da minha realidade, das mães que eu acompanhei. Todas as mulheres produziram algum volume de leite. Mas o meu trabalho nunca é focado na quantidade de leite porque a amamentação é uma relação. Tem a ver, claro, com fornecer alimento, mas também com a maneira de se vincular com aquela criança. Se eu considerar sucesso sem pensar na quantidade, sim, é possível falar em taxa sucesso. Agora, ainda não existe um protocolo definido universalmente sobre esse assunto e nem tem como a gente medir a eficiência e eficácia desses protocolos. Posso dizer que 100% das mulheres que eu atendi produziram alguma quantidade de leite. Mas esses 100% não foram muitas mulheres.
O caso de Marcela Tiboni foi o primeiro?
Sim, foi o primeiro que eu acompanhei fazendo um protocolo completo. Eu já tinha acompanhado poucas mães que adotaram bebês mas que amamentaram por um período curto. A Marcela foi o primeiro caso que a gente começou na gestação ainda. Hoje atendo oito casos de mulheres cujos bebês já nasceram ou que estão grávidas fazendo o protocolo. Eu trabalho há 15 anos na área e esses casos não apareciam. Acredito que era só falta de informação mesmo. A Marcela acabou divulgando bastante nas redes sociais, escreveu um livro, isso tudo ajudou no acesso à informação de outros casais de mulheres também.
O que muda nos casos de indução de produção de leite em mães adotivas?
Existe uma diferença entre a lactação adotiva e a lactação induzida em casais de mulheres. A principal diferença é que a gente não sabe quando o bebê adotado vai chegar. E o protocolo com uso de hormônios e dos galactogogos, até a época em que se começa a usar a bomba, isso tudo é planejado a partir da possível idade gestacional com a que o bebê vai nascer. Em um casal de mulheres em que uma engravida, a gente tem uma data aproximada de quando o bebê vai chegar. Ajuda a gente pensar em quando começar com os hormônios, com os galactogogos e com o estímulo com bomba.
No caso de bebês adotados, já se começa pela sonda?
Geralmente, sim. O processo de produção de leite não é automático, não é mágico. Depende de tempo, estimulação. No caso de um casal heteronormativo por exemplo, quando um bebê chega e tem uma só mãe para amamentar e que ainda não produz leite, precisamos garantir que essa esteja alimentada. Então, a gente começa com a sonda para que esse bebê faça a alimentação no peito. Junto, entramos com a estimulação mecânica. Eu uso ainda alguns galactogogos variando de uma mulher para a outra, dependendo dos indicadores de risco. A regra número 1 de quem trabalha com amamentação é alimentar o bebê.
A regra número 1 de quem trabalha com amamentação é alimentar o bebê.
KELY CARVALHO
Consultora de amamentação
É comum o uso de medicamentos galactogogos?
É comum sim, está descrito na literatura. Não tem nenhum remédio específico para aumentar produção de leite. O que se tem são esses remédios cujo efeito colateral é o aumento de nível de prolactina. Tem que avaliar cada mulher para ver a melhor indicação de galactogogo. Importante ressaltar que o uso de galactogogo sozinho não faz nada. Precisa ter boa técnica de amamentação, estimulação mecânica com bomba e um corpo que responda a tudo isso de maneira efetiva.
No caso de adoção de bebês que não sejam recém-nascidos, fica mais difícil pegar o peito?
O que a literatura diz é que bebês de até oito semanas são mais propensos a apresentar os reflexos de sucção mais ativos para mamar no peito. Os bebês nascem com esse reflexo mas a função de amamentação é aprendida nos primeiros meses de vida. Quanto mais tarde a gente colocar esse bebê no peito, mais adaptado ele vai estar a um bico de mamadeira por exemplo. Se os bebês chegam para as famílias antes das oito semanas, a chance de serem amamentados é maior. Lembrando só que, no Brasil, isso é muito difícil, a não ser que as pessoas façam “adoção à brasileira”, que é crime. Porque o processo legal demora e, às vezes, as crianças chegam mais velhas. Mas ainda assim é possível tentar, vai depender do encaixe peito-boca, da relação que essa criança tem com o outro instrumento que usa para mamar e até da ansiedade de todo mundo para isso funcionar. Mas eu sempre acho que dá para tentar - sem garantir nenhum tipo de resultado.
Como fica a questão da amamentação cruzada? A amamentação de mães não-biológicas não oferece mais riscos de doenças?
Amamentação cruzada, que é eu amamentar um filho que não é o meu biológico, é proibida no Brasil. Mas muitas mulheres amamentam filhos que não são seus. A prática não é recomendada pelo risco de transmissão de doenças como HIV e hepatite. Qualquer mulher doente corre o risco de passar os vírus via leite materno. Por isso que, em um pré-natal bem feito, se pede todas as sorologias da gestante e esses exames são levados para a maternidade. Os exames que a ginecologista pede para a mãe que vai induzir a lactação são os mesmos que a mãe gestante fez. O que acontece muito, pelo menos com as minhas pacientes que não tiveram equipe particular de ginecologista e pediatra acompanhando no hospital todo o processo, é serem proibidas de amamentar na sala de parto, mesmo com os exames em dia. Isso porque os hospitais consideram amamentação cruzada. Na minha opinião, um casal de mulheres, em que uma passou por processo de inseminação ou fertilização, não deveria caracterizar amamentação cruzada. Elas não estão amamentando os filhos de outras mulheres, mas os próprios filhos. Inclusive, legalmente, já é possível sair do hospital com os nomes das duas mães no registro das crianças.