Marina Lima cantou os sentimentos de muitas gerações. Na plateia, olhos fechados, braços para cima e “meu amor se você for embora sabe lá o que será de mim” em coro é cena comum nos seus shows. Ou melhor, era. Longe dos palcos desde o início da pandemia, a artista hoje se dedica a suas composições em casa, enquanto aguarda por cenários melhores para reencontrar seu público.
Vivendo intensamente todas as estações, a menina do Rio de Janeiro, cidade que virou símbolo do seu trabalho, encontrou um porto acolhedor em São Paulo, onde mora há oito anos, e celebra a chegada ao que chama de seu “inverno pessoal”, sem perder o calor de verão no coração. Aos 65 anos, Marina trabalha incansavelmente para que música, letra e dança não parem e se diz cada vez mais livre para ser quem é:
— Não vai ser depois dos 60 que eu vou deixar de pensar ou sentir, ou dizer, ou querer contribuir numa conversa com o que realmente acho, com o que descobri com o tempo. Depois dos 60, eu ganhei essa liberdade, de menos culpa, de ser mesmo quem eu sou. Essa sou eu. Isso é libertador.
A dona da voz que protagonizou inúmeros sucessos do pop brasileiro tem voltado o foco a estudar e compor. Ainda em 2018, deu início ao projeto de um songbook que reúne as partituras de todas as canções gravadas nos 21 discos de seus 40 anos de carreira. Música e Letra foi lançado no fim de abril, junto com o EP Motim, com quatro faixas inéditas, que revelam parte de sua reinvenção como artista. Diferentemente dos álbuns tradicionais, seu trabalho se adapta a um novo jeito de se consumir música, mais rápido, mas não menos intenso e profundo. Suas letras fazem referência ao momento político atual, à covid-19 e a sua jornada pessoal, com uma breve autobiografia expressa na canção Apogeus.
Os dois lançamentos reforçam o aviso de que Marina não vai parar tão cedo. Em conversa por vídeo, via Zoom, a cantora falou sobre seus planos e as descobertas que a rotina dentro casa tem proporcionado.
Nós, mulheres, temos o direito de ser quem somos, de dizer o que pensamos. Quem não gostar que se dane. Quem ficar chateado, paciência.
Como você tem lidado com este momento? Mudou algum hábito ou teve alguma prioridade que acabou revendo por conta da pandemia?
Teve um negócio engraçado que aconteceu. Eu poderia tocar violão e criar o dia inteiro, mas tem uma hora em que você fica cansada, e eu peguei o hábito de assistir televisão. Primeiro, programas de notícias, na GloboNews, na CNN, mas também encontrei programas incríveis no canal Curta e no Arte 1. No Curta, descobri um filósofo francês chamado Luc Ferry (um dos principais defensores do Humanismo Secular, autor do best-seller Aprender a Viver), que eu não conhecia. E assisti, por exemplo, no Arte 1, um especial do pianista Lang Lang em homenagem a Nova York. Ele tocou em um lugar ao ar livre, escolheu grandes clássicos da música popular e convidou cantores para participar disso. É lindo. Volta e meia, descubro programas, descubro coisas, voltei a ler. Não é que eu tenha tempo livre, porque a gente sempre acha alguma coisa para fazer. Eu tenho um gato que me dá um trabalho do cão. Eu caí no conto do gato (risos).
Achou que seria tranquilo...
Disseram: “gato não dá trabalho”. Olha, esse gato me tortura.
Como é o nome dele?
É Wesley Safadão. Esse gato é uma peste (risos). Então, tenho isso. Sou casada (com a advogada Lídice Xavier), tenho os amigos com quem faço call. A última vez que viajei foi pro Rio, em setembro passado, porque eu quis estar perto do meu irmão, dos meus amigos e tal. Volta e meia há coisas para fazer, mas geralmente eu fico muito aqui, vendo um especial, lendo um livro, estudando dentro de casa.
Com tantos hits na carreira, de onde vem essa identificação que você desperta no público? É do tanto de ti que coloca nas composições?
Uma vez li uma entrevista da (artista sérvia) Marina Abramovic, uma mulher talentosíssima, em que ela fala uma coisa que vários artistas falam, mas a maneira como ela disse me tocou: que quanto mais pessoal, quanto mais profundo, mais universal aquilo é. Ou seja, todo mundo é muito parecido no fundo. Como diz o Caetano (Veloso): de perto, ninguém é normal. Mas cada um tem alguma coisa que, se você for olhar, se parece com a loucura do outro. Acho que o talento de compor uma boa canção é escolher o que vale a pena para ti. Por exemplo, o amor é um tema típico, mas que nunca cansa. Como é que vai falar desse amor a ponto de alguém já não ter alguma música que já ouviu e já escolheu? Por que vai ouvir a sua? Então, a maneira que você fala das coisas, a honestidade e a forma com que que você vai fazer isso é o que cativa o público.
A maneira que você fala das coisas, a honestidade e a forma com que que você vai fazer isso é o que cativa o público.
No auge dos seus 65 anos, o que tem sido mais marcante para você na passagem do tempo?
Depois dos 60 anos, acho que é um inverno da existência, que pode durar até cem, até 90, mas depois dos 60 é um outro momento. Para mim, esse inverno é claro como o verão. Ou seja, envelhecer tem sido bom. Eu tenho lembranças, mas eu não gostaria de voltar a página. Vivi as minhas fases muito bem, raspei o prato de cada coisa importante. Depois dos 60, veio primeiro uma autoafirmação e a certeza de que, nós, mulheres, temos o direito de ser quem somos, de dizer o que pensamos. Quem não gostar que se dane. Quem ficar chateado, paciência. Não vai ser depois dos 60 que eu vou deixar de pensar ou sentir, ou dizer, ou querer contribuir numa conversa com o que eu realmente acho, com o que descobri com o tempo. Depois dos 60, eu ganhei essa liberdade, de menos culpa, de ser mesmo quem eu sou. Essa sou eu. Isso é libertador. Sou uma pessoa muito curiosa, aí estudo música, entro na escola de novo, eu gosto dessas coisas. Isso tudo me distrai, eu acho graça na vida. Componho, conheço gente diferente de mim, tudo contribui. Tem muito encontro legal que me mantém animada.
Marina, você passou pela depressão, que inclusive é uma das doenças mentais cujo número de casos aumenta consideravelmente, agravado ainda mais pelo cenário da pandemia. Como foi esse período e como você se sente hoje?
Foi um período muito ruim porque eu demorei para descobrir. Como eu não tinha histórico de depressão na família, não detectei logo, então fiquei muito tempo muito angustiada, infeliz e sem saber o que estava acontecendo. Quando entendi e achei um médico psiquiatra que tratou disso, foi muito rápido. Hoje em dia, vejo que a depressão foi um período difícil, mas que ela durou mais tempo do que deveria pela minha falta de informação. Percebo que a depressão é uma gavetinha minha, que diz muito sobre mim. Tem várias gavetas, mas ali tem algumas coisas que eu entendo sobre mim. Foi algo muito importante. Nunca é fácil passar por uma dificuldade assim, mas no fundo do poço tem mola.
Como o fato de ser mulher, uma adolescente ainda, influenciou no início da sua carreira?
No começo, dificultou. Eu tinha 17 anos, mulher, autora, compositora. Quando assinei um contrato com meu irmão (Antonio Cicero, 10 anos mais velho) não tinha nem 18. Então, claro que enxerguei um monte de homem babaca preocupado por eu ser mulher, que eu ia me meter, que ia dar palpite. Em compensação, encontrei um monte de caras músicos sensíveis, que entenderam e me ajudaram a desenvolver o meu talento. Todo mundo sabe que tem gente arbitrária. Mas quem é bacana mesmo não acha normal uma mulher não ter o mesmo direito, um negro não ter o mesmo direito. Quem é legal, quem tem ética, não acha isso bom.
Quem são as mulheres marcantes da sua vida?
Minha mãe, Tia Léa (Léa Millon, empresária da MPB, conhecida por esse apelido por ser tia de fato de artistas como a própria Marina, imortalizada por Jorge Ben Jor na música W/Brasil: “Alô, alô, Tia Léa, se estiver ventando muito, não venha de helicóptero”), a Monique Gardenberg (produtora artística, diretora de cinema e teatro), a Joyce Pascowitch, uma grande amiga jornalista, a minha primeira empresária, com quem eu morei junto, Marcia Álvarez. Tem várias amigas que eu adoro, tem a Lídice (Xavier), que mora comigo há oito anos, que é muito importante, e as mulheres solidárias umas às outras.
E você, menina do Rio, já vive há alguns anos em São Paulo. Como essa mudança de cidade mexeu na sua vida?
São Paulo tem dois defeitos: a poluição e não ter mar. Fora isso, é uma cidade maravilhosa, que te acolhe muito bem, que muita gente do país inteiro escolhe para tocar a vida. O Rio é uma cidade linda, tem o mar que eu adoro, mas São Paulo é um porto aberto, todo mundo vem pra cá. Não tem mar, mas tem onda, que é o que as pessoas criam. As pessoas se ajudam. Eu fui muito bem acolhida aqui. Sinto falta do mar, porque o mar em mim é um remédio. Se estou pesada e caio no mar, flutuo, é mágico. Sinto essa falta do mar, mas fora isso estou bem e sou muito feliz aqui.
Carregue as experiências e as lembranças, mas você não pode viver disso.
Onde os momentos felizes estão escondidos?
Acho que estão no presente. Meu irmão Antonio Cicero foi quem escreveu essa parte (da música À Francesa). Se você vive no passado, vive de lembrança, e aí você se sente um inútil, parece que não tem uma vida no momento. Os budistas sabem disso: o importante é você estar no presente, é onde estão as grandes possibilidades. Carregue as experiências e as lembranças, mas você não pode viver disso.
O que a Marina de hoje diria para a Marina de cinco anos de idade? Aquela que recém havia ganhado o primeiro violão do pai.
Primeiro, daria um abraço nela, a encheria de beijos e diria: Marininha, fica firme, porque a vida te reserva um destino lindo, segura a tua onda, segura aí.
5 músicas de Marina, por Marina
- "A Chave do mundo, que está no meu primeiro disco, foi uma das primeiras canções minhas que senti ser profunda.”
- “Fullgás, foi a minha primeira consagração autoral.”
- “Virgem, porque criou uma marca dos dois irmãos, eu e Cícero.”
- “Criança, porque criou uma marca musical, eletrônica, minha.”
- “Todas as faixas do EP Motim. São muito o que sou agora. Ao mesmo tempo, parece que nunca mudei.”