Quando as primeiras notícias sobre o coronavírus chegaram ao país, Ana Beatriz Nogueira voltava aos estúdios da Globo no Rio de Janeiro para as gravações de mais uma novela das nove. Promissora e aguardada, Um Lugar ao Sol estava prevista para estrear no horário nobre logo após o fim de Amor de Mãe – que acabaria sendo encerrada apenas neste ano após as filmagens terem sido suspensas no Projac. Era a segunda personagem da atriz, de 54 anos, criada por Lícia Manzo, autora que estreou em versão solo com a trama das seis A Vida da Gente, de 2011. Dez anos depois, o folhetim voltou à TV recentemente, em mais uma das reprises que completam a grade de programação para entreter o público enquanto as novas histórias não vão ao ar.
Durante o período que passou reclusa em sua casa na região serrana do Rio, a artista não conseguia ficar parada. Inquieta, se inscreveu em vários cursos logo no início do confinamento, mas não chegou nem perto de terminar algum. Além da apreensão com a crise sanitária, pensava também em como poderia auxiliar as famílias de profissionais ligados às produções teatrais, como técnicos, que estavam sem renda.
— Quando tive a ideia de como fazer teatro de maneira segura, mergulhei de cabeça — recorda Ana Beatriz, em entrevista à Donna por telefone.
Em parceria com o gestor do Teatro PetraGold, André Junqueira, a atriz criou o projeto Teatro Já, que levou ao palco peças protagonizadas por nomes como Marcelo Serrado, Lilia Cabral e a própria artista. As encenações eram em versão solo: apenas um ator ou um casal no palco, enquanto câmeras paradas, a distância (e seus operadores devidamente protegidos), reproduziam as tramas pela internet. Para representar o público, a plateia era formada, de forma simbólica, por apenas uma pessoa, que assistia das últimas cadeiras do auditório.
— Foi o mais pertinho do que conseguimos chegar do que é teatro. Criei a história do espectador único, porque enquanto houver alguém na plateia e no palco, há teatro — reflete.
Com o apelo da ideia ganhando força, Ana Beatriz apostou em mais uma iniciativa ligada ao teatro – desta vez, em sua própria casa. Investiu em equipamentos de gravação e, num palco improvisado, passou a transmitir peças e shows simples no chamado Teatro Sem Bolso. “A ideia partiu de um bolso vazio, mas de uma intenção cheia”, contou, à época do lançamento. Foi ali que ela se reencontrou com um dos textos marcantes de sua carreira teatral, Tudo Que Eu Queria Te Dizer, uma adaptação do livro de mesmo nome de Martha Medeiros. Na pandemia, a obra ganhou versão digital pela primeira vez.
Não quero voltar (no tempo). Sou zero saudosista. Quero estar exatamente onde estou, como estou, da maneira que estou
ANA BEATRIZ NOGUEIRA
atriz
— Ela é uma potência no palco e revelou-se uma potência online também, e não bastasse ser uma atriz espetacular, ainda é uma ativista em prol da arte, está sempre criando e buscando engajamento em ações que permitam que a cultura se mantenha em pé — comenta a escritora e colunista de Donna sobre a atriz, de quem se tornou amiga fora dos palcos.
Antes de virar teatro online, o monólogo foi a primeira peça que Ana Beatriz interpretou após receber o diagnóstico de esclerose múltipla, em 2009. Depois de ter um surto durante as gravações da novela Caminho das Índias, a atriz buscou ajuda especializada. Primeiro, recebeu o que o médico chamou de “falso positivo” para a doença. Algum tempo depois, o diagnóstico se confirmou. Por dois meses, ficou de cama, “se sentindo debilitada”, como contou à colunista Patrícia Kogut, do jornal O Globo.
— Achei que era o fim. Como atriz, meu corpo é meu instrumento de trabalho, meu tudo. O trabalho é minha festa, minha fonte de renda, minha alegria, minha beleza. Partimos para o tratamento — contou à jornalista. — De lá para cá, nunca trabalhei tanto na vida.
Por seis anos, Ana Beatriz excursionou pelo país interpretando as cartas ficcionais de Martha, que retratam histórias femininas de sonhos, amor, rejeição e solidão. A peça foi uma guinada: nos palcos, entendeu que a doença, que se manifesta de forma branda no caso dela, não seria impeditivo para seguir adiante.
Desde que falou publicamente sobre a esclerose, em 2018, a artista tem pensado em como ser uma voz amiga a quem recebe o mesmo diagnóstico. Assim nasceu o blog Qual É o Pensamento?, em que divide experiências e informações. “Acredito que podemos tentar ter uma visão positiva: o que nos ajuda no dia a dia, os pequenos truques, dicas, tudo o que auxilia na melhora da qualidade de vida. (...) De minha parte, vou sempre tentar fazer um link com a arte, que é o que tem me ajudado todos os dias”, relata no site.
Hoje, a vida da artista, que completou 35 anos de carreira, começa a ensaiar uma volta à (quase) normalidade com o retorno das gravações de Um Lugar ao Sol. Ela está escalada para viver a mãe de um dos gêmeos interpretados por Cauã Reymond, viúva que será vítima de um golpe financeiro. Nas redes sociais, segue uma voz ativa pela valorização das artes dramáticas. Em suas postagens, é o trabalho que domina: Ana Beatriz costuma deixar sua vida pessoal em off.
— Não faço uma carreira de celebridade. Nada contra, mas amo a minha vida pessoal ser preservada. É sobre se sentir bem ou não — explica.
A seguir, veja momentos do nosso bate-papo com a atriz que abre o jogo sobre sua paixão pelo trabalho e os impulsos criativos nos últimos meses.
A Vida da Gente voltou à TV e teve o retorno comentado nas redes sociais. Como é para você se ver novamente na pele da Eva?
Era uma personagem excelente, com um elenco muito amoroso e harmonioso. Nós criamos uma relação para além da novela. No meu caso, principalmente com Nicette (Bruno - atriz que morreu em dezembro do ano passado, aos 87 anos, vítima da covid-19), que foi uma amiga muito presente na minha vida todos esses anos. Quando vejo a novela, fico comovida. Sinto muita saudade da Nicette. Devia estar falando do trabalho, né? (risos) É tão recente a partida dela e minha ligação com ela era tão forte… Fico feliz vendo a novela e saudosa, com uma saudade diferente, do futuro. Não vou encontrá-la por aqui, ao menos.
A reprise de A Vida da Gente é também uma homenagem para Nicette.
Na novela, você tem um exemplo recente de alguém que se foi por causa da covid-19. Uma atriz amada, respeitada e querida, que faz você lembrar que essa criatura fantástica se foi com a covid. Para bom entendedor, é uma mensagem muito forte. Aqueles que não querem ver, não adianta ter novela nem nada. Quem quer permanecer na ignorância, permanece. A ignorância é uma escolha. Fico muito agradecida quando alguém me tira da minha. Nós não éramos apenas colegas de trabalho, éramos amigas. Contava a minha vida, confidenciava. Tinha uma relação muito próxima. Ainda estou muito mexida com a partida dela. Neste momento, estamos vivendo um horror. Não consigo acreditar nas pessoas na rua sem máscara. Como é que pode? Não há entendimento possível, dá uma revolta. Com a covid, definitivamente, entendi o que é indignação. É como se fosse uma demonstração de desprezo à vida, dele e dos outros.
A Eva é obcecada pela carreira da filha, tanto que interfere na vida dela de uma forma autoritária. Ela coloca em xeque a ideia do “vale tudo por amor”?
O ser humano faz muita bobagem em nome do amor, né? Usa o amor para justificar erradamente. É fácil falar que foi em nome do amor. Que amor? Ali, no caso, é uma mãe que quer se realizar através da filha. A filha é objeto de desejo. Mais do que um ser humano com suas questões, é objeto de fascínio. E a outra filha é alvo de repúdio, como se tivesse vindo com defeito. É uma mulher extremamente vaidosa, egoísta, que se realiza através da filha e que justifica com o amor tudo o que faz. Assim como toda boa vilã, ela nos deixa margens para humanizar em vários momentos.
Você comandou vários projetos durante a pandemia. Foi, de certa forma, um empurrão criativo?
Tudo foi feito para ajudar as famílias dos técnicos e de atores que não tinham de onde tirar. Nossa profissão precisa de gente. E, se não pode aglomerar, muita gente não tem como trabalhar. Achei uma maneira digna de ajudar. Tivemos um rigor imenso, não nos encontrávamos um com o outro. Era ator e texto, não se podia gastar com cenário.
A arte foi um respiro nesse momento difícil que estamos enfrentando?
Se havia alguma dúvida da importância do nosso ofício, acho que acabou. Você viu o quanto de generosidade dos cantores com suas lives gratuitas, sem ter nenhuma questão financeira, para ajudar as pessoas que estavam em casa. A arte cura, a arte é salvadora.
No seu blog, você divide suas experiências com a esclerose múltipla. É uma forma de ajudar quem descobre o diagnóstico?
Sim. O nome assusta, até porque as pessoas não sabem o que significa esclerose. Eu tenho a forma que chamam de benigna, a mais branda. Esse blog é para dar esperança através da arte para quem quer que tenha essa doença, ou qualquer outra doença autoimune. É um diagnóstico duro. Eu falei só depois de 10 anos, para você ter uma ideia. Senti muita falta de ler alguma coisa que me desse um norte, que fosse uma esperança, dependendo do caso da pessoa. Se a pessoa tem me visto nos últimos anos na TV ou no teatro, e ela souber que eu tenho (esclerose), vai ter esperança.
Você é uma mulher de 54 anos, independente, com foco na carreira. Acha que ainda há julgamento pelas escolhas que a mulher faz?
Vivemos em uma época melhor, é um processo, ainda há muita coisa a ser feita. Mas tivemos muitas conquistas. A questão é que a gente se vê, às vezes, comemorando algo que deveria ser natural. Mas acho que as mulheres estão com tudo, com toda a força. Ainda temos muito o que conquistar, só acho que nós somos danadas de boas.
Você se considera vaidosa?
Me considero vaidosa em um limite bacana. Se não está feliz com algo, dou a maior força para a pessoa fazer o que ela quiser. O importante é estar bem, e isso é diferente para cada um. É claro que você se olha no espelho, ainda mais com TV, novelas antigas, fala: “Ih, como ela envelheceu”. Mas não olho para isso com drama, olho como uma constatação: “Veja quanto tempo já passou”. Não quero voltar (no tempo). Sou zero saudosista. Quero estar exatamente onde estou, como estou, da maneira que estou.