Enquanto espera a volta das gravações de Amor de Mãe, suspensas desde março em razão da pandemia do coronavírus, Jéssica Ellen tenta desacelerar a rotina intensa de trabalho, iniciada no ano passado. Atriz, cantora e bailarina, essa carioca de 28 anos estrelou um musical, cantou com Elza Soares no palco do Rock In Rio e ganhou papel de destaque na novela das nove, tudo em 2019. Como a professora de História Camila, Jéssica cresceu no horário nobre da Globo. Antes, esteve nas séries Justiça e Filhos da Pátria e na novela Totalmente Demais, que está sendo reprisada na faixa das sete.
Na trama das nove, ao lado de Regina Casé e Adriana Esteves, Jéssica levou para a TV temas como educação e maternidade, tendo cenas viralizadas na internet – que espectador não se emocionou com o discurso de formatura, logo no primeiro capítulo?
A artista tem aproveitado o período em casa, por conta da pandemia, para retomar antigos hobbies e ocupar o tempo (e a cabeça) em um momento tão difícil: cozinhar e se exercitar são alguns deles. Aos domingos, abre o Instagram para um projeto de lives sobre autocuidado – já falou de religião, ioga e astrologia.
Tem ficado mais à vontade consigo mesma, como ela mostra nas fotos desta reportagem, sem maquiagem, clicadas por um amigo em casa, respeitando o distanciamento social, como ela faz questão de frisar.
No papo de mais de uma hora com Donna por telefone, a atriz refletiu sobre autoestima, racismo, representatividade e privilégios. Filha da empregada doméstica Nilma, nascida e criada na Rocinha, Jéssica seguiu os conselhos da mãe e se agarrou aos estudos, desafiando sua realidade: descobriu o mundo do teatro, da música e da dança, e foi para a Universidade de Oxford, com uma bolsa de intercâmbio.
– Tive muitas oportunidades que primos meus, que têm as mesmas família e estrutura, não tiveram – reconhece.
Como tem sido esse período de distanciamento social para você?
Estou num nível de saudade da minha família muito forte. Tenho uma família muito numerosa, são quatro irmãos, um monte de primo, um monte de tio e tia. E é uma família muito festeira, todo fim de semana era motivo pra gente inventar um churrasco e ficar junto, então está sendo mais difícil essa parte. Mas no início foi louco porque confesso que não estava acompanhando o avanço do coronavírus em outros países. Com as gravações, a gente fica com uma agenda muito intensa, só dá tempo de chegar em casa, jantar, tomar um banho, dormir, acordar e estar lá de novo. Então veio o anúncio (da pausa nas gravações). Nunca vi a Globo parar gravação de novela por nenhum outro caso. Comecei a pesquisar mais sobre a doença e fiquei impressionada, é muito triste mesmo.
A gente vive em um mundo muito diverso, em que o que é dito como belo depende muito das instituições e dos lugares de poder, como o audiovisual, as revistas, os canais de comunicação.
JÉSSICA ELLEN
atriz
Como você tem acompanhado a falta de perspectiva do que vai acontecer?
Vou te falar que acho que isso reflete a desigualdade no nosso país, porque todos os outros países que conseguiram frear ou inverter esse jogo ou são pequenos ou de certa forma são mais preparados na questão da saúde e onde a situação econômica e financeira não é tão desigual. Costumo dizer, nas minhas entrevistas e conversas com amigos, que a pandemia no Brasil não criou a desigualdade social ou o racismo, ela só evidenciou o que já estava há muitos anos acontecendo. É muito triste a gente ver o número de mortos em nosso país e constatar que, em sua maioria, são pessoas pretas e pobres. Isso não é uma mera coincidência.
E você mora sozinha ou está passando esse período de distanciamento com o namorado (Jéssica namora o ator Dan Ferreira)? Como tem sido a rotina?
Eu moro sozinha, mas meu namorado é meu vizinho, então a gente está revezando as casas. Está sendo muito bom poder passar com ele, a gente está fazendo mais coisas juntos. Quando eu estava gravando, a gente se encontrava menos, eu estava exausta e ele também tem a agenda dele. Então essa parte está sendo muito boa. E sobre a rotina, nas primeiras semanas eu falei: "Gente, vou fazer nada, vou dormir, descansar". Mas eu gosto de rotina, ela me traz muita segurança. Então, eu criei uma dentro da nova realidade. Voltei a fazer exercícios diariamente, porque muitas vezes eu deixava "para amanhã" por causa da novela...
E que também faz bem para o corpo e para a mente, né?
Súper! Libera endorfina e os hormônios do bem-estar. Então ok, a gente está nesse momento difícil, mas eu preciso me manter bem, manter meu corpo saudável. Também criei uma rotina de voltar a cozinhar, que eu amo, eu aprendi a cozinhar com 10 anos de idade, com a minha mãe. E cozinhar acaba preenchendo um bom tempo nessa quarentena, em que um dia às vezes parece ter 24 horas e às vezes parece ter 72. Eu desacelerei a rotina e voltei a fazer coisas que eu gosto. Fiz várias faxinas, botei um monte de roupa pra dar, que eu já não usava, porque às vezes a gente fica num apego né? Eu não preciso de tanta roupa no guarda-roupa. E assim, cada semana é uma nova semana.
Você fez 28 anos há pouco tempo. Como foi passar confinada?
Sou apaixonada por datas, comemorações, renovações. Poxa, é o dia do seu aniversário, acho tão especial. A minha família é uma escadinha: eu tenho uma irmã que faz aniversário em abril, outra em maio e eu em junho. No início do ano, a gente estava organizando como ia ser a festa da minha irmã mais nova, eu tinha indicado um bufê de uma amiga e de repente não deu. E a festa que eu tinha pensado em fazer pra mim também não. Porque eu gosto, acho muito especial, sabe? É o dia que você nasceu, é uma oportunidade de agradecer aos pais pela vida, agradecer aos avós pela existência dos seus pais, e isso é muito forte pra mim, porque eu tenho uma relação forte com a ancestralidade por conta da religião. E eu tenho muitos amigos, adoro festa. Adoro astrologia, sou muito geminiana, falo à beça (risos). E tive a ideia de fazer uma live, cantando músicas do meu CD. Consegui juntar família, amigos e pessoas que me acompanham. Chamei o Dan para dirigir e foi especial. O Dan também pegou depoimentos de várias pessoas e fez um vídeo de 12 minutos. Assisti chorando! Eu me senti perto das pessoas que amo.
Você mencionou que tem uma relação muito forte com a religião. Sua crença também tem lhe confortado nesse momento?
A religião se apresentou na minha vida desde muito cedo. A minha mãe, falando de astrologia de novo, é pisciana, e piscianos são conectados com a espiritualidade por natureza. São pessoas que têm muita fé na vida, muito sensíveis. E minha mãe sempre foi essa referência de fé. Desde criança tenho memórias de ir num centro de umbanda pegar doce de Cosme e Damião, receber um passe do Caboclo. Então, a religião de matriz africana sempre esteve presente na minha vida. Com 13 anos, meu primeiro curso de teatro também tinha a arte como um processo de autoconhecimento, e dentro da grade tinha aula de meditação, de ioga, de danças populares. Com 13 anos eu já estava meditando! O candomblé, que eu sigo hoje em dia, conheci um pouquinho mais tarde, com 20, 21 anos, através de uma amiga que é atriz e foi minha professora de dança na escola Angel Vianna, onde sou formada. Depois de uma aula, ela convidou o pessoal para uma festa no terreiro e minha turma foi, e foi uma experiência linda, a gente jantou e celebrou aquele momento. Eu fiquei encantada com a forma como a religião olha a vida, e passei a frequentar. Quando vi, já estava inserida na comunidade. Acho muito bonito porque, quando estou no candomblé, lembro da minha família. Porque é isso: uma grande comunidade com muitas pessoas. A gente aprende a lidar com a diversidade, com as diferenças.
No fim de maio, você deu início a um ciclo de lives no seu perfil do Instagram sobre autocuidado. Como escolhe os temas que quer abordar?
Fiquei pensando em como manter a relação com o público que me acompanha e já tinha feito umas lives com a minha irmã, de clássicos da Disney. A gente ama as músicas da Disney, cresceu assistindo, e foi muito bom, porque a gente se divertiu, divertiu as pessoas e matou a saudade uma da outra. Mas pensei em como falar de alguma coisa que traria algum conforto ou para trocar uma ideia em relação ao coronavírus. É claro que a gente não controla absolutamente nada que acontece na vida, mas podemos escolher como atravessar esse momento difícil. Não me sentia confortável em ficar palestrando, aí fiz o convite para algumas pessoas que trabalham com saúde. A ideia é ser um bate-papo de afeto, de troca. Quis oferecer algo amplo e diverso para que as pessoas buscassem o que elas mais se identificavam.
Autocuidado tem relação com autoestima. Nessa quarentena, a gente tem ouvido e visto mais mulheres se conhecendo melhor, ficando mais à vontade consigo. Como foi construída a sua autoestima e como você lida com essas questões de amor-próprio?
É muito bonito isso que você falou, de que esse é um momento de as pessoas olharem pra si. Acho muito isso. É óbvio que a gente está vivendo um momento muito difícil, de pandemia mundial, muitas pessoas estão perdendo familiares, mas se a gente consegue minimamente mudar a perspectiva, a gente pode olhar pra dentro, ver o que melhorar como pessoa, como ser humano. A autoestima deve ser regada diariamente, como se fosse uma plantinha mesmo. A gente vive em um mundo muito diverso, em que o que é dito como belo depende muito das instituições e dos lugares de poder, como o audiovisual, as revistas, os canais de comunicação. Na minha infância e adolescência, só via mulheres brancas de cabelos lisos, na maioria das vezes loiras, estampando as capas de revistas. É óbvio que a minha autoestima não era a mesma de hoje. Não me identificava com o que era dito como belo. Falo muito da Taís Araújo, porque ela foi a primeira mulher bonita que eu vi estampando capas de revista, fazendo campanhas de cosméticos, estando na televisão e ainda era parecida comigo!
Faltam as referências, né?
A gente está engatinhando nesta questão. Claro que hoje consigo reconhecer que houve uma mudança. Vejo nas minhas primas, uma delas, de 13 anos, nunca alisou o cabelo e nem pretende. Eu alisei e passei pela transição capilar. A autoestima também precisa ser cuidada dentro de casa, mas os meios de comunicação reforçam muito isso. Se hoje em dia posso estampar a capa de Donna, que é uma revista do Sul, onde tem muitas pessoas diferentes de mim, mostra que a gente está no caminho. É o ideal? Acho que não, ainda tem que mudar muito. Outro exemplo: as mocinhas também são magras geralmente. Por que não existe uma mocinha gorda? Sou uma mulher negra, de cabelo crespo, mas magra. Por que as atrizes gordas não estão protagonizando uma novela, estampando capas de revista? No país em que a gente vive, cada estado, pra mim, é um míni país. A nossa cultura é muito vasta, a gente não pode escolher um modelo e taxá-lo como a única beleza que tem, porque vamos trazer muitas chagas para uma sociedade. E eu acho a diversidade tão linda, tão rica.
Quando fez a transição capilar?
Foi dos 17 para os 18 anos, estava indo para o terceiro ano do Ensino Médio. Nesse mesmo período recebi uma bolsa de estudos para estudar inglês. Fui para Oxford, na Inglaterra, onde era a única aluna negra. Quando cheguei, todo mundo falava: "Você é muito gata", e eu achava aquilo esquisito, porque no meu convívio as pessoas ainda estavam falando da minha transição capilar. Cara, precisei atravessar o Atlântico para ver essa grande diversidade, pessoas completamente diferentes de mim me achando linda. Voltei para o Brasil com uma autoestima! E não só por causa do olhar das pessoas, mas foi um processo em que eu saí do meu ambiente para outro completamente diferente. Quando fui a Londres vi que era cada um de um jeito e pensei:"O que que as pessoas no Brasil estão limitando e me dizendo que meu cabelo é feio?" A gente precisa ampliar o horizonte.
Sou uma mulher negra, de cabelo crespo, mas magra. Por que as atrizes gordas não estão protagonizando uma novela, estampando capas de revista?
JÉSSICA ELLEN
sobre representatividade
Nessa quarentena mais gente descobriu seu talento como cantora. Como é essa relação com a música? E como foi a experiência de subir ao palco do Rock In Rio e cantar com Elza Soares?
É muito legal quando percebo que a minha vida artística sempre foi como uma escadinha: uma coisa acontece e me ajuda a viver outra história. E sou muito grata a arte mesmo, porque ela é um grande norte na minha vida. Comecei dançando com 10 anos, com 13 eu conheci o teatro e com 16 fiz minha primeira aula de canto coral, na escola de música da Rocinha, que é um projeto social superbonito que tem. Até chamei os alunos para cantarem na última faixa do meu CD.
Trabalho como atriz há oito anos, com a música ainda é um pouco recente. A ideia surgiu em 2017 e se concretizou em 2018, quando lancei o Sankofa, que é uma homenagem à minha ancestralidade, à minha família e ao começo da vida adulta. Tem uma música que eu amo que é Coco de renda, que fala de uma menina que virou mulher e, para mim, o CD marca um pouco isso, um momento de amadurecimento.
Eu tinha muita vontade de fazer musical quando adolescente, e eu fiz muitos testes e nenhum rolava! Depois que eu fiz o CD, recebi uma ligação de uma produtora do Rio falando de um musical com músicas do Lulu Santos. Achei legal, né? Música pop, bem diferente do que eu canto, e eu gosto disso, de fazer coisas diferentes, acho que tem a ver com a diversidade do geminiano (risos). Mas aí ela me chamou para o musical e eu disse: "Claro, vai ser um prazer, quando é o teste?". E ela: "Não Jéssica, o diretor está fazendo um convite pra você, ele ouviu seu CD e amou a sua voz. Não tem teste". E eu não acreditei, que coisa louca foi! Foi muito especial e foi uma grande escola, porque musical é muito intenso, cantar, dançar. E a coisa da escadinha que eu falei é porque na peça eu conheci o Zé Ricardo, que além de ser diretor musical, faz a curadoria de dois palcos no Rock In Rio. Eu nem sabia disso, mas a gente ficou superamigo e uma vez ele me ligou pra fazer um convite. Eu estava achando que ele ia me chamar para o Palco Favela, justamente porque eu sou da Rocinha e estava rolando uma curadoria de artistas periféricos. Mas aí ele disse: "Eu quero que você cante com a Elza!". Eu quase caí pra trás! A Elza já tinha outros convidados como as meninas d’As Bahias e a Cozinha Mineira e um rapper de São Paulo chamado Edgar. Foi uma grande experiência, foi muito forte. E foi um ano intenso: eu fiz um musical, cantei com a Elza e no final do ano estreou Amor de Mãe.
Você está no ar na reprise de Totalmente Demais, no papel da Adele. Como tem sido rever a personagem e a trama no ar?
Era uma criança (risos)! Mas acho muito legal reprisar porque foi uma novela de muito sucesso, na época eu lembro de ser um grande boom. Mas confesso que não gosto muito de rever trabalho, não. Porque há cinco anos eu fazia de um jeito que não faço mais hoje. O artista está sempre buscando melhorar. E eu sou muito exigente comigo mesma, eu olho e consigo ter uma empatia, pelo amor de Deus, eu tinha 23 anos, mas não dou conta de acompanhar, porque eu sou muito diferente já da Jéssica de cinco anos atrás. Mas é divertido ver o público acompanhando, a repercussão.
A Totalmente Demais tem um pé forte na moda. Qual é a sua relação com o assunto?
Lembro que achava muito divertido o figurino da Adele. Achava ela corajosa e autêntica. Na época fiquei influenciada, ousei um pouco mais. Ainda estou construindo minha relação com a moda, um pouco por conta do que a gente conversou mais cedo, da coisa das capas de revista, de serem sempre mulheres muito magras, loiras e brancas, e achava que a moda não era pra mim, tinha uma sensação de distanciamento. E isso é uma coisa que estou começando a desconstruir e construir de novo.
A minha relação com a moda parte muito do conforto. Ao mesmo tempo, estou começando a também me permitir brincar um pouco com a ousadia. Por exemplo, a roupa que eu usei no lançamento da novela (Amor de Mãe) era uma saia vazada (veja o look na foto acima). Quando eu vi a coleção da Ângela Brito, que é uma estilista cabo-verdiana, eu achei a peça superousada e falei por que não? É lançamento de novela, minha primeira novela das nove. Foi superlegal! E também eu nem tenho que estar sempre com esse tipo de roupa, foi uma coisa pontual. Ainda estou construindo essa relação com a moda, mas de maneira muito livre, sabe?
Todos estão com saudade de Amor de Mãe. Existe alguma previsão de voltar a gravar a novela?
Eu também estou (risos). Quando a gente parou de gravar, a gente parou de receber roteiro também. Mas eu não tenho noção mesmo. E acho importante não ter pressa, porque a Globo é um grande foco de aglomerações. Para o público são só dois atores ali, mas atrás das câmeras tem o cenógrafo, o menino do som, o figurino, é uma equipe muito grande. Para fazer uma cena sozinha ou com duas pessoas, tem toda uma movimentação. Acho que os diretores dos estúdios ainda estão fazendo um estudo para ver como vai ser esse retorno seguro.
Já no primeiro capítulo, a Camila foi um dos assuntos mais comentados com a cena do discurso da formatura. Mas tiveram muitas outras cenas memoráveis. Por que você acha que a Camila se tornou tão popular?
Fico muito feliz de ter esse retorno tão positivo do público, porque é a minha primeira novela das nove. Eu já tinha feito duas das sete, algumas séries muito legais. E eu estava tipo, apavorada, com o horário nobre, porque todo mundo ia ver aquele negócio! Então a gente fica muito feliz com o retorno. Acho que o que torna a Camila uma personagem muito especial é que ela tem ideais muito humanos. São valores que 90% das pessoas acreditam, que é a educação como agente de transformação, a relação com a família, a relação com um cara que é um parceiro de vida. Então, acho que ela é um personagem bem complexo e que dentro da trama consegue mostrar a personalidade dela de diferentes modos. E tem muitas Camilas no Brasil. Na época em que a novela estava no ar, eu ouvia muito isso "ai, a Camila sou eu, é minha história". Eu mesma tive uma Camila na minha vida, uma professora de História, a Sueli Maria, que pra mim foi uma grande referência. Ela foi a minha única professora preta em toda a minha vida escolar e acadêmica. Ela me marcou muito. Acho que todo mundo teve uma Camila em sua vida, sabe? Acho que por isso a popularidade.
Você nasceu e cresceu na Rocinha, mas você e seus irmãos tiveram oportunidade de estudar. Como vê a educação no país e como se mantém otimista com o futuro?
A educação sempre foi um valor que a minha mãe defendia. Ela também queria ser outra coisa, tinha o sonho de ser enfermeira, mas a vida foi muito dura com ela, que abriu mão desses sonhos. Lembro de novinha uma vez chegar em casa e perceber que ela estava em dificuldade, não só eu, meu irmão mais velho também dizia que ia terminar o colégio e ia trabalhar pra ajudar. E ela fazia um auê, dizia: "Não quero filho meu trabalhando, a obrigação de vocês é estudar". Eu falava pra ela que queria trabalhar com arte, e ela me dizia: "Tudo bem, então estuda". Passei a minha vida estudando, fui a primeira pessoa da minha família a entrar na faculdade, não concluí porque comecei a trabalhar na minha área. Com 18 anos fiz teste na Globo e estreei minha primeira novela aos 19. Meus irmãos também conseguiram furar essa bolha e estão na faculdade de Música. Foi um estímulo que veio da minha mãe, ela entendeu que por conta dela não ter tido oportunidade estudar, isso limitou a relação dela no mercado de trabalho. Porque sim, se você tem ensino superior, por exemplo, numa negociação salarial, seu valor já é mais alto, então óbvio que a educação é fundamental e vira uma moeda de troca no mercado de trabalho. E minha mãe, mesmo tendo estudado até quarta série, teve um entendimento de mundo muito grande. E além disso, uma fé muito grande.
Você me pergunta como me manter otimista neste caos? Acho que com fé. Minha mãe falava que eu tinha que trabalhar, arregaçar as mangas e fazer acontecer. Dá muita pena perceber que tem gente com vontade, fé e que infelizmente talvez não consiga, porque as oportunidades são escassas. Tive oportunidades que primos meus, que têm as mesmas família e estrutura, não tiveram. Eu tive oportunidades e agarrei com unhas e dentes, mas e se eu não tivesse tido, estaria aqui hoje dando essa entrevista, sendo capa de revista, fazendo uma novela das nove? Existem muitas Jéssicas, assim como existem muitas Camilas, por aí. Pessoas com sonhos não realizados. E isso não tem a ver com a capacidade da pessoa, mas com a desigualdade social.