Eu sou noveleira e sei que boa parte do Brasil também é. Apesar de serem obras de ficção, muitas novelas são inspiradas em situações reais e é importante que elas mostrem essas questões para que a gente possa refletir e, quem sabe, começar a mudar algumas coisas a partir disso.
É o caso de Amor de Mãe – eu diria que é impossível não se identificar com ao menos um dos personagens ou ver família e amigos em outros. O folhetim das 21h da Rede Globo comprometeu-se em fugir da obviedade de vilão x mocinho e segue um caminho mais humano, aquele em que cada um comete erros e acertos. É um diálogo melhor que o outro e todos são dignos de serem assistidos com atenção.
O capítulo exibido na segunda-feira (13) trouxe um desses. A professora Camila (Jéssica Ellen), uma das filhas de Lurdes (Regina Casé), foi atingida por uma bala perdida durante um tiroteio na escola onde trabalha. No hospital, descobre uma gravidez indesejada.
Em conversa com a mãe, a professora desabafa sobre as dificuldades de ser mulher, negra e pobre no Brasil. A mãe diz que a filha vai aguentar, "porque ela é forte".
Um pouco inconformada, Camila diz:
– O problema é esse. Eu sempre vou ter que ser forte. Sempre! Eu tenho que ser forte porque a gente é pobre e eu quero estudar. Aí eu tenho que passar de primeira, porque eu não posso perder nenhuma chance. Nenhuma! Eu tenho que ser forte porque eu sou mulher e pra mulher tudo é mais difícil. Tem que aguentar sempre um babaca olhando para o meu peito ao invés de prestar atenção no que eu tenho a dizer. Eu tenho que ser forte porque eu sou preta e a gente vive num país racista. Eu tenho que ser forte porque eu sou professora. Porque... eu tentei ajudar meus alunos, eu tomei um tiro, eu tenho que ser forte... Eu estou cansada, mãe! Eu estou cansada. Eu estou cansada de ser forte. Eu não vou poder ser fraca? Nem um dia? Nem uma vez na minha vida?
Lurdes responde:
– Olha pra mim. Tu vai ter que ser forte. Tu não pode fraquejar. Ainda não dá pra ser fraca. Nesse mundo que a gente vive, não dá. Eu não aguento isso. Em tudo você tem que ser a melhor, passar em primeiro lugar. Isso me dá raiva. Por que tem quer ser assim? Mas é assim. A gente tem que continuar assim, aproveitando cada chance da vida. Por que tem que estar o tempo todo assim? Porque a gente não é gente, não. A gente é sobrevivente. Ainda mais pra nós, para a mulher, é muito mais difícil. Ainda mais tu, da tua cor. Como eu queria que ninguém te julgasse pela cor da tua pele. Mas ainda não dá. A gente tem que continuar empurrando o mundo, mesmo ele sendo muito pesado, empurrando pra ele mudar. Tu virou uma professora. Tá educando um monte de menino, pra mudar o mundo. E se a gente for bem forte, a filha desse aí que tá na tua barriga vai poder fraquejar. Por enquanto não dá, não, filha.
Assista à cena:
Infelizmente é isso.
A mulher já nasce forte e não pode "se dar ao luxo" de fraquejar em nenhum momento da vida. A mulher negra então, nem preciso falar. Não podemos ser medianas. Temos que provar, sempre, o quanto somos capazes – e mesmo assim não somos respeitadas e levadas a sério.Podemos criar coisas incríveis, mas sempre terá alguém para desmerecer e até tirar nossos créditos.
Temos que provar, sempre, o quanto somos capazes – e mesmo assim não somos respeitadas e levadas a sério."
A imagem feminina ainda tem cunho sexual, de incapacidade e servidão ao patriarcado. Mesmo que pareça que isso está diminuindo, pelo menos um pouco, logo algo acontece para que ficamos em alerta de novo.
Como Lurdes disse, vivemos com a esperança de que o que fazemos hoje possa dar um pouco de conforto na vida das pessoas que estão por vir, mas será que isso realmente vai acontecer? Será que poderemos relaxar um pouco no futuro? Será que vamos poder deixar uma oportunidade passar agora porque teremos outra mais adiante?
Só sei que todo mundo deveria ouvir o discurso de Camila. E refletir sobre ele.
Duda Buchmann é blogueira que gosta de falar do mundo feminino, principalmente da mulher negra, e de inspirações que elevem a autoestima delas. Escreve semanalmente em revistadonna.com.