Pela primeira vez nas 63 edições da Feira do Livro de Porto Alegre, uma mulher passará o cargo de patrona do evento para outra. O evento que ocupará a Praça da Alfândega de 1º a 19 de novembro terá como anfitriã a escritora Valesca de Assis, que substituirá a amiga Cíntia Moscovich. O ato parece ainda mais simbólico se olharmos para a homenageada deste ano mais de perto.
Aos 72 anos, Valesca tem como último romance A Ponta do Silêncio (Ed. Besouro Box, 2016), sobre uma mulher acusada de matar o próprio marido em uma cidade interiorana. Temas como relacionamentos abusivos e linchamento da opinião pública, tão presentes no noticiário de hoje, aparecem no centro da obra em que a autora trabalhou por 13 anos.
– Se é para abrir determinados potes com a escrita, que se abra e jogue a tampa longe de uma vez – brinca a autora.
Valesca recebeu a reportagem de Donna na casa do bairro Tristeza em que vive com o marido, Luiz Antonio de Assis Brasil, também patrono há exatos 20 anos.
Você enxerga um significado especial, como mulher, em receber o patronato da feira de outra mulher
Não acho que seja de a gente se envaidecer. É para constatar um progresso que a mulher teve com seus novos papéis. Eu costumo dizer que isso vem desde as cavernas: as mulheres sempre dentro das casas. Subestimadas por intelectuais desde Aristóteles, que eu amo, mas que dizia que as mulheres eram muito burras e por isso deveriam apenas cuidar das crianças. E o contrário também: estamos no século 21 e recém os homens estão um pouco mais atuantes no lar. Até poucos anos, eles ainda ficava mais perdidos dentro de casa do que matando uns bisontes por aí. Então é uma mudança mais recente do que parece. Na minha época, um homem não subia no bonde nem com a bolsa de uma criança.
E quanto à escolha como patrona, foi surpresa para você?
Nunca imaginei que fosse acontecer, que fosse chegar ao patronato da Feira do Livro. Minha primeira oficina literária foi aos 38 anos. Publiquei o primeiro livro aos 45 anos. Então, eu não esperava, porque a carreira literária é muito demorada. No meu caso, houve ainda outros desafios. Além de já ser um pouco mais velha, o que exigia um primeiro livro melhor, eu era casada com um escritor. Então eu sabia que se eu não encontrasse um estilo meu, iriam dizer que ele havia escrito os livros por mim. Hoje, quem nos lê, percebe que são dois tipos de escrita completamente diferentes.
Vocês “trocam figurinhas”? Leem e opinam sobre os textos um do outro?
Eu sempre li os livros do Luiz. No início, eu lia cada capítulo. Mas, de uns tempos pra cá, ele me entrega para ler só no final, para testar o impacto do livro. Sou uma leitora bem rígida. Parentes, em geral, tendem a dizer que tudo o que a pessoa escreve é lindo e maravilhoso. Eu não. Digo o seguinte: “Pode até demorar mais para publicar, mas não vou te deixar passar vergonha”. Ele só lê meus livros prontos também. Até aponta uma coisinha técnica e outra, mas diz que tem muita dificuldade em dar opinião. É o último gentil-homem, como diz o Sergio Faraco (risos). Então, para críticas, recorro a outros leitores.
Você acredita em um tipo de literatura feminina? Faz sentido essa definição entre quem trabalha com ficção?
Observo uma característica comum a autoras mulheres que considero importante: narrar muito bem os interiores. Mas alguns autores homens também conseguem fazer isso bem. Em relação a uma “voz feminina”, ao ponto de vista de uma mulher na narrativa, bons escritores conseguem compor muito bem personagens homens e mulheres. Existe uma voz feminina, mas ela não é inalcançável e nem exclusiva de mulheres. Assim como o inverso funciona da mesma forma. O meu primeiro personagem literário, por exemplo, foi um homem. Porque eu queria esse desafio de traduzir a interioridade masculina.
Em relação aos temas das histórias. Alguns são mais caros às mulheres?
Na literatura, eu não sei. Na sociedade, eu penso que, para nós, mulheres, a questão ainda não está resolvida dentro de casa. Uma militante feminista disse certa vez que é mais fácil queimar sutiãs na rua do que mudar a postura dentro de casa. Mesmo quando não tem ninguém impedindo a mulher de ser algo, de fazer algo, às vezes é ela mesma que não se permite. São sentimentos difíceis, pensamentos mesquinhos, que elas não gostam nem de falar sobre.
Na trama de A Ponta do Silêncio aparecem situações de abuso no ambiente doméstico. Seu último livro foi para mexer nesses feridas aí?
De certa forma, sim. Algo que faço muito é guardar notícias de jornal. Guardo por anos, até que elas ressequem de emoção, para depois eu dar início a uma história. Eu vi a notícia de uma mulher que era suspeita de ter matado o marido. Na cidade, ela era vista como uma conselheira, uma professora, alguém que escrevia para o jornal. Só que ela não podia dar muitos passos sozinha. Era impedida de mostrar quem realmente era. Eu peguei aquilo e fiz a personagem. O livro se passa em uma semana, e a personagem não pode falar. Se comunica por gestos e bilhetes. Foi um desafio tremendo.
Você comentou que o livro demorou 13 anos para ser escrito. Nesse meio tempo, passou-se a se falar muito mais em temas como abuso, assédio e violência contra a mulher. Como o livro conversou com essas mudanças no mundo em torno dele?
Mudou bastante coisa. Mas o que eu queria escrever, não mudou tanto. Aquelas pequenas agressões verbais, aquelas desconsiderações em um relacionamento em que uma pessoa vai destruindo a outra. Sempre tem um mais fraco. Eu mesma vi pessoas próximas que desperdiçaram o seu talento, que não puderam exercê-lo, porque foram sufocadas por ciúme, por relações de poder. No livro, retrato um casamento de 30 e poucos anos. Pegou muito um tempo em que uma mulher não poderia ambicionar nada em uma cidade pequena. E tem incorporações que funcionam daquele jeito: se você está com um livro na cabeça, tem que estar sempre com os dedos na tomada. De tempos em tempos dizer: “isso aqui cairia bem na minha personagem”, e usar.
Você diria que esse é um livro feminista? Ou que a sua escrita permeou o tema?
Não estou pronta para me dizer feminista. Acho que não me preparei o suficiente. Ainda estou em turbulência com o meu feminismo (risos). Mas eu fui a primeira pessoa da minha família que trabalhou fora. Em uma época em que isso vinha carregado de culpa: 40 horas trabalhando como professora e ainda tomando conta da casa. Fico contente de ver hoje que a minha filha é casada com um rapaz de 50 anos e ele realiza tarefas domésticas, leva a criança ao médico. Então, acho que postura das mulheres e dos homens foi mudando e que eu participei da minha forma. Ouvi da minha filha, uma vez, que ela gostava de eu trabalhar fora, porque as mães donas de casa das amigas falavam muita besteira (risos). Na década de 1960 a gente achava as feministas meio loucas. Mas são os loucos que começam as revoluções. Mesmo as que a gente participa sem se dar conta.
E no trabalho de escritora, como essas revoluções acontecem?
Pois é. As mulheres que escreviam, no meu tempo, eram as solteironas, as viúvas, as consideradas desequilibradas. Por exemplo: sou da terra da Lya Luft (Santa Cruz do Sul), e ela não era muito benquista por lá no passado. “Ai, meu Deus, que coisa mais não sei o quê”, comentavam. Entre os descendentes de alemães, valem muito as aparências. E o que eu escrevo também, digamos, não são livros ideais para ler comendo torta e tomando chá (risos). No passado eu achava mais fácil matar do que mudar, mas hoje não. Hoje eu tenho gosto de me livrar de qualquer ambiente e pensamento mesquinho.
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