Karl Lagerfeld partiu deixando um histórico de talento e criações icônicas. Desde 1955, quando o então jovem alemão se tornou assistente de Pierre Balmain, até 2019, no comando da Chanel e Fendi, duas das maiores marcas de luxo, além de sua marca homônima, Lagerfeld esteve no epicentro da moda com seu espírito inovador e talento e visão inigualáveis.
Ao contrário de seus igualmente geniais contemporâneos, como Yves Saint Laurent e Hubert de Givenchy, ele não ficou conhecido pela criação de peças específicas. Seu maior feito e trunfo foi a capacidade magistral de reinvenção constante. Basta observar o exemplo da Chanel: o maior símbolo da moda clássica atemporal deve sua relevância nos dias de hoje aos 36 anos do Kaiser como diretor criativo da maison.
Em 1983, quando assumiu o posto, a imagem demasiada tradicional da marca, ligada aos conjuntinhos de tweed, pérolas e camélias, era considerada pouco interessante – e Lagerfeld teve espírito punk ao acreditar que, venerando exageradamente as tradições, você não consegue evoluir e transcender. Portanto, decidiu reinventar os clássicos, criando formas infinitas de dar uma cara nova às peças idealizadas por Coco Chanel décadas antes. Os tailleurs, marca registrada da grife, surgiram na passarela em versão jeans, couro e outros materiais pouco explorados ganharam destaque, em um styling com atitude rock’r’roll. Antes da logomania se tornar tendência, os “Cs” entrelaçados estamparam não apenas roupas, mas também pranchas de surf e skate, demonstrando uma tremendo tino para o marketing.
Nas mãos de Lagerfeld, Chanel virou pop. Ele foi precursor do formato desfile-espetáculo, com passarelas dignas de superproduções de Hollywood, garantindo o posto da maison como convite mais disputado da semana de moda de Paris. Os privilegiados que presenciaram as apresentações testemunharam shows com réplicas deslumbrantes de foguete, shopping center, robôs, Torre Eiffel e até um iceberg.
Mesmo aos 85 anos, Karl tinha muito em comum com a juventude da atualidade, um senso de urgência e a busca constante pela novidade – era a curiosidade que o mantinha sempre à frente. Multimídia muito antes de isso se tornar lugar-comum, o prolífico estilista criava uma média inacreditável de 20 coleções anuais, era fotógrafo, diretor de comerciais e ilustrador. Personagem perfeito nessa era de mídias sociais, da imagem cuidadosamente cultivada com os fios prateados mantidos à base de muito xampu seco, as camisas de colarinho impecável usadas com peças de alfaiataria em uma espécie de uniforme, as onipresentes luvas (o próprio estilista revelou que passou a usá-la depois que a mãe o advertiu sobre ter mãos feias) e os óculos escuros. Poucos ícones de verdade têm imagem tão marcante como a sua, complementada por uma personalidade forte: suas considerações polêmicas eram prato cheio para gerar discussões e muito barulho.
Se a simpatia pela sua persona pública era discutível, seu amor e sua contribuição às artes não são passíveis de questionamento. Uma disciplina imensa o fazia trabalhar até 16 horas por dia – seu maior vício era criar. Audacioso e visionário, em 2004 assinou uma coleção para a gigante fast fashion H&M. O sucesso estrondoso com todas as peças esgotadas em poucas horas abriu precedentes para prática que hoje é corriqueira – e Lagerfeld foi o primeiro a colocá-la em prática. Dono de uma biblioteca gigantesca, tinha conhecimento enciclopédico, confirmando que é necessário conhecer as regras para subvertê-las. Cultivava um tremendo respeito pela história, mas sem ficar paralisado na nostalgia. Karl Lagerfeld era absolutamente contemporâneo, independentemente da idade: um homem do seu tempo que dedicou a vida à busca do novo e do belo e que se retira deixando um legado brilhante, potente e jamais entediante. Perdemos seu ponto de vista, mas Lagerfeld e seu espírito serão eternos.