Observe um casal discutindo. Melhor: recorde-se das suas próprias brigas de casal. A mais recente, por exemplo. Não um desentendimento bobo qualquer, mas alguma conversa em que nenhum dos dois tenha conseguido provar que estava com a razão e acabou indo dormir emburrado, certo de que o cabeça-dura era o outro, que quem estava errado era o outro, que quem agiu de forma indigesta foi o outro.
Sempre que me pego envolvida em alguma discussão (nem precisa ser uma briga de casal, pode ser com qualquer pessoa que seja importante para mim), eu, como todo mundo, acho que a razão está do meu lado, mas adoraria ouvir a opinião de um juiz celestial que tivesse assistido não só a discussão, mas os fatos que a precederam, e pudesse decretar quem, afinal, estava certo. É um desejo bem compreensível, ainda que delirante.
Uma vez um ex-namorado me disse: “Existe a sua versão, existe a minha versão e existe a verdade”. Não sei se ele estava citando algum filósofo. Na hora fiquei tão impactada que não dei o crédito a nenhum grego ou alemão, e sim a ele próprio. A partir daquele dia, nunca mais acreditei que, durante uma briga, há um único culpado e um único inocente. Encerrei a busca por vereditos, desisti de bater martelos e minha onipotência baixou a bola.
Em todo conflito pessoal existe a minha versão, amparada não apenas pelo meu ponto de vista, mas pelos anos transcorridos, desde os mais recentes até os mais remotos – infância incluída. Minha versão vem avalizada não só pelo que fiz e disse durante o episódio que promoveu a briga, mas por todos os meus pensamentos secretos que o outro nunca soube que eu tinha, por todas as fantasias que o outro nunca soube que eu cultivava, por recalques e medos que, vai ver, nem eu mesma percebia em mim. Minha versão é formada não apenas por um critério, um princípio, uma observância racional, mas pela história inteira da minha vida – a objetiva e a subjetiva.
A versão do outro, que a nós sempre parece meio alucinada (no caso de ser diferente da nossa), está amparada também por silêncios, traumas e heranças que desconhecemos, mas que estavam ali presentes durante o duelo verbal. A razão de um versus a razão do outro é uma luta de exércitos invisíveis. Com alguns golpes baixos: uma mentirinha aqui, um exagero ali, omissões providenciais. Até que, nas primeiras horas da manhã seguinte, um pedido de desculpas vindo de um dos lados, ou de ambos, surge para sossegar os ânimos. E o amor pode, enfim, seguir seu curso.
Uma verdade pura, absoluta, real, sem interferência das nossas neuras? É inatingível. Jamais a conheceremos. Nossas versões que se entendam sem um juiz celestial – cuja sentença seria a meu favor, com certeza.