Conheci José Falero através de seu livro Os Supridores. Até então, nada sabia dele. Devorei o romance. Não era a primeira vez que lia uma história passada na periferia, mas dessa vez me senti levada pela mão até o miolo da vila, o epicentro da pobreza, o cenário real onde uma população de homens e mulheres trabalha em troca de uma miséria, sem perspectiva de futuro. Criminalidade? Temos, mas não apresentada como defeito de caráter, e sim como consequência de um estado de coisas, que ele descreve com originalidade, humor e algumas vísceras. Logo no início, ali pela página 50, uma conversa entre os personagens Pedro e Marques funciona como uma aula sobre os diferentes sistemas socioeconômicos, narrada de um jeito que uma criança de sete anos consegue entender. Humm, livro chato, então. Poderia ser, não fosse diabolicamente empolgante, inteligente e bem escrito, levando-se em conta que não existe apenas um modo de escrever e de falar.
Isso foi em março de 2021. De lá pra cá, li outros tantos livros e dei trato à vida. Pois Falero reaparece agora com uma coletânea de crônicas publicadas na revista digital Parêntese. Título: Mas em Que Mundo Tu Vive? Abri com o mesmo ânimo com que fechei Os Supridores. E veio a bofetada.
Logo percebi que não seria tão palatável. Se antes eu havia sido gentilmente conduzida pela mão até as entranhas do inferno, agora eu estava sendo empurrada pelas costas, sem ver direito para onde ia, quase um sequestro. Mas os livros deixam sempre a porta destrancada; se eu quisesse sair, saía. Não saí. Passei dois dias inteiros com Falero, sua família e seus amigos na Lomba do Pinheiro, apanhando sem tentar fugir. Agora não era mais a ficção de Pedro e Marques, e sim a voz do próprio autor, sua história, suas broncas, sua angústia. Revolta que só mesmo a literatura reverbera – e também a música, o cinema, a arte. Não é no Instagram que a vida real ganha forma e cor.
Condescendência – taí uma palavra que não faz parte do vocabulário de Falero. Ele coloca o dedo em todas as feridas e remexe até sangrar, ele expõe sem rodeios a dor de ser pobre e preto numa sociedade indiferente, descreve o que é se sentir um rato e o tamanho da desesperança. Se Falero pudesse dizer alguma coisa pra mim, agora, seria “valeu, Martha, mas o que você está escrevendo aí não vai servir pra nada”. Eu sei.
Você não quer confete, Falero, e sim quebrar o ciclo das injustiças sociais, que é o que todos deveriam querer também. Mas permita que eu use a minha página, hoje, para atrair os que têm coragem de levar uma bofetada, duas, três, até acordarem do transe da conformidade. E avisá-los que você bate, sim, mas também consegue ser lírico e muito emocionante. Sei lá, vá que sirva para alguma coisa.