Entrego esta coluna antes do 7 de Setembro, sem saber se as manifestações convocadas pela turma do barulho foram ou não pacíficas. Que tenham sido e que agora a gente caminhe para as eleições sem maiores tropeços, confiando no bom-senso dos eleitores nas urnas.
Eletrônicas, por supuesto.
Porque o 7 de Setembro já passou, o assunto aqui pode parecer um tanto datado, fora de hora, velhusco. É que ontem alguém – que não conheço – mandou por e-mail uma espécie de cartão todo em verde e amarelo, com uma foto que, à primeira vista, me pareceu um vidro de compota, só que maior.
O título poético, vá lá, escrito em uma fonte tipográfica de convite de casamento dos anos 1960, esclareceu: que o coração da liberdade ilumine o coração do Brasil.
Era a foto do coração de Dom Pedro I. A compota macabra, como alguém de muito espírito definiu. Um híbrido de mondongo com pêssego no tom amarelo-desmaiado, ou melhor: amarelo-finado. Até então, por desinteresse ou ignorância, eu tinha me fixado apenas nas notícias, sem me ater à imagem do dito cujo.
Coração de Dom Pedro I chega ao Brasil em avião da FAB.
Coração de Dom Pedro I será esperado por autoridades como se o Imperador estivesse vivo, diz o Itamaraty.
Coração de Dom Pedro I recebido com honras de Chefe de Estado pelo presidente.
Separar o coração do corpo foi um desejo do próprio Dom Pedro I, que morreu de tuberculose em Lisboa, mas quis que seu órgão de amar – no sentido figurado – fosse enterrado na cidade do Porto por razões sentimentais. Por que ele não preferiu transferir toda a sua nobre carcaça, não me pergunte.
Em 1972, para comemorar o sesquicentenário da independência brasileira em plena ditadura militar, os restos mortais de Dom Pedro I foram transferidos para o Brasil. O caixão, também recebido com honras, foi levado para todas as capitais brasileiras, participou de desfiles e ficou exposto à visitação até ser definitivamente enterrado em São Paulo, às margens do riacho Ipiranga e do grito de Independência ou Morte. Embora a expressão “definitivamente”, em se tratando desses restos mortais, seja algo que definitivamente não existe.
Vendo esse vai e vem póstumo, me ocorre que Dom Pedro I, depois de falecido, tem mais milhas aéreas que a maior parte dos brasileiros vivos. Periga ser categoria Diamante, o que daria vantagens extras no próximo voo. Fica a dica.
A compota macabra do imperador me lembrou de alguns órgãos que vi expostos em vidros há muitos e muitos anos, pedaços extirpados que eram guardados como souvenirs de cirurgias. Não sei se ainda se usa essa prática, mas ela era bem comum quando eu era pequena.
Podia ser um vidro com o apêndice que alguém teve que extrair com urgência. Ou as amígdalas da tia Ieda, primeira pessoa da família a se submeter a uma operação com anestesia. A mãe de um amigo guardava um pedaço de placenta no formol para lembrar do parto difícil. Mas era o dedo do pai da Lisiane, uma colega do primário, a grande atração daquele tempo.
Guardado em um vidro de palmito, o polegar perdido em um acidente doméstico ficava em cima da mesa enquanto a gente fazia os trabalhos em grupo, e claro que, um dia, um dos guris abriu o vidro e pegou aquela coisa molhada e pegajosa e fria para assustar as gurias, e depois disso a mãe da Lisiane proibiu os trabalhos em grupo na casa dela.
O coração de Dom Pedro I já voltou para a cidade do Porto, de onde, provavelmente, voltará a sair nos 250 anos da nossa independência.
Meus herdeiros que lutem. Eu não estarei mais aqui para ver.
Melhor assim.