Uma matéria excelente da última revista Piauí investiga as dependências de empregada, esse cômodo incômodo das casas e apartamentos que, não raro, é menor que o closet dos patrões. Algo tão naturalizado que continua ocupando a menor metragem possível nos projetos que ainda o contemplam. Depois que a PEC das Domésticas estabeleceu direitos mínimos para a categoria, em 2013, a “empregada que durma no emprego”, disponível enquanto havia movimento na casa, já não é encontrada com tanta facilidade. Ainda bem.
Lendo a matéria, pensei em todas as funcionárias das casas em que morei com minha família. Éramos quatro crianças em escadinha, o que determinou a necessidade de alguém para ajudar a mãe nas tarefas diárias. Não faço ideia de qual salário essas mulheres recebiam. Muito não devia ser, nosso orçamento sempre foi apertado, mas quero acreditar que meus pais foram, pelo menos, pagadores justos.
A matéria da Piauí traz histórias de antes da regulamentação do serviço doméstico. Uma das moças trabalhou até entrar em trabalho de parto e retomou a labuta tão logo voltou do hospital. Criado no quartinho, o filho que hoje tem 52 anos conta que passou a infância e a adolescência entre a área de serviço e a cozinha. Aos sábados, quando não tinha aula, era despertado pelo barulho da máquina de lavar roupa, que ficava ao lado da cama de solteiro que ele dividia com a mãe. Todas as empregadas domésticas entrevistadas pela revista são pretas, como é preta a grande maioria delas ainda hoje. Acrescente o racismo – também naturalizado – ao pacote de desrespeitos às trabalhadoras e suas famílias.
Nessas histórias, como na minha casa, o quartinho da empregada era também o depósito para o que não tinha serventia no momento, mas que ainda poderia ser aproveitado, o que excluía qualquer possibilidade de descarte. Isso valia tanto para roupas quanto para caixas de sapato ou cadernos meio usados ou brinquedos que ficaram no passado dos adolescentes da família.
Nunca ocorreu a um de nós que aquele lugar minúsculo era tudo que a funcionária tinha depois de um dia de trabalho, e que ele precisava ser decente, mesmo que simples. Também nunca ocorreu aos construtores dos prédios, porque muitos dos quartinhos sequer tinham janela. Era uma basculante, e olhe lá. Quase que os classificados podiam anunciar então: apartamento de três quartos, sala com dois ambientes, área de serviço separada e senzala.
O tratamento que o Brasil deu às empregadas é mais um capitulo que deveria nos envergonhar enquanto sociedade. Perdão às honrosas exceções, mas a gente fez tudo errado, seja nos casos em que se traziam meninas do Interior profundo para trabalhar nas casas de família, em geral privando-as de estudo, até os tantos exemplos em que as empregadas domésticas eram (são?) passadas de mãe para filhos, como uma cristaleira que está na família há gerações, só que com menos valor.
Quem não conhece ao menos um caso de rapaz iniciado sexualmente pela empregada, espécie de tarefa extra que os patrões até achavam engraçada? Sem falar nos abusos que, inúmeras vezes, elas sofriam (sofrem?) por parte dos homens da casa. Tudo isso acontecendo ali, no quartinho de serviço, enquanto a dona da casa reclamava que o pó da estante não estava bem espanado.
Esse levantamento da realidade das empregadas domésticas vem se juntar aos tantos casos de mulheres em situação análoga à escravidão – um eufemismo para dizer que elas eram escravas – resgatadas nos últimos dias, muitas a partir de denúncias provocadas pelo podcast A Mulher da Casa Abandonada, do jornalista Chico Felitti. Se ainda não ouviu, oito belos episódios te esperam no Spotify. Sobre os quartinhos que elas ocuparam (ocupam?) ao longo de décadas, é quase inacreditável que tanto descaso e tanta falta de empatia possam caber em três metros quadrados. Ou menos.
Dia desses, um senhor bem vestido e acompanhado por amigos da mesma idade falava aos brados, em um restaurante de Porto Alegre, que o mundo era muito melhor antes, quando não se procurava problema em tudo. Deu vontade de ir até a mesa dele para perguntar: o mundo era melhor, meu senhor. Mas para quem?