Um menino passa a vida inteira com uma imagem na cabeça. É uma mulher com o olhar doce, tudo que ele lembra de uma cena trágica que presenciou em um aeroporto. Alguns anos depois, Paris é destruída na Terceira Guerra Mundial, e a população agora vive nos subterrâneos, dividindo espaço com os ratos para fugir da radioatividade. É nos esgotos que são feitas experiências com pessoas que ou perdem a esperança, ou morrem, ou enlouquecem. E chega o dia em que o menino que começou essa história, agora um homem, é levado para a tal experiência por algo que mais ninguém ali tem: memória.
Toscamente falando, esse é mais ou menos o resumo do curta-metragem mais lindo que já foi filmado no mundo, La Jetée – pier, cais, plataforma, em francês. Um filme em preto e branco de 1962 todo montado com fotos, que viram imagem em movimento, e imagens inesquecíveis. O quinto filme solo de Chris Marker, que foi muito mais que um grande cineasta, foi um grande escritor, um grande fotógrafo, um grande artista multimídia, um bricoleur de imagens, como ele mesmo se definia. Um artista tão completo, tão importante, que essa página mereceria ser assinada por um crítico de verdade, o Goida (afeto que levo para sempre), ou o seu Hélio Nascimento, ou o Ivo Stigger, ou o Feix, o Ticiano, o Lerina, tantos mais. Mas como a paixão aqui é minha, vamos de Claudete mesmo.
Contemporâneo de Marker, o diretor Alan Resnais certa vez falou que “existe uma teoria que circula, e com um certo fundamento, segundo a qual Chris Marker seria um extraterrestre. Ele tem aparência humana, mas a verdade é que vem do futuro, ou de um outro planeta”. Chris Marker era um pseudônimo, e ele não gostava de ser fotografado. Chegou a ir incógnito à sua própria vernissage em uma galeria em Londres, e só se soube que ele esteve lá porque deixou um gato desenhado na lista de presenças. Marker, que morreu no dia do seu aniversário de 91 anos, em 29 de julho de 2012, talvez olhasse com estranheza para esse nosso mundo de selfies, autopropaganda e lives, muitas lives.
Para isso a quarentena tem me servido, para acertar as contas com tudo o que troquei pelas minhas pressas, desimportâncias e futilidades
Eu, que não havia assistido La Jetée até esse meu outono da vida – e para isso a quarentena tem me servido, para acertar as contas com tudo o que troquei pelas minhas pressas, desimportâncias e futilidades –, agora não consigo tirar esse filme da cabeça. Quem me apresentou foi o meu filho. Não dá para contar mais nada por risco de spoiler, mas dá para fazer uma pergunta: qual é a imagem mais remota que tem acompanhado você por toda a sua vida?
Um brinquedo que marcou a infância? O seu Rosebud, Rosebud, como em Cidadão Kane, o cinema sempre a contribuir com a realidade?
O primeiro dia de aula e a sensação de “agora cravou”, nada mais será como antes?
Uma cena com a mãe. Uma cena com o pai, e feliz dia para aqueles que sabem ser pais de verdade neste segundo domingo de agosto.
Uma roupa. A minha é uma calça roxa que ficou em frangalhos quando caí do gira-gira na pracinha, o tecido raspando no chão de concreto até a roda parar. Imagine o estado dos joelhinhos.
Um livro que alguém leu para você. Um desenho na televisão. Um filme.O primeiro amor no jardim A.
No confinamento, sem saber ao certo o que vai acontecer, com medo de sair por causa da doença. É quase a situação de La Jetée, e isso que eles não tinham um líder abilolado do lado de fora. Dentro de casa, para quem puder ficar, que as memórias passadas tragam conforto – e inspiração para o que virá. Saudade do que a gente ainda vai viver, em uma livre interpretação daquele filósofo do século 21, o ex-menino Neymar. Quer um programa? Acesse o link.