Com Porto Alegre enfrentando uma fase crítica da contaminação pela covid-19, conversei com duas médicas que, se não estão na linha de frente, convivem com profissionais de saúde que lutam na guerra. Rosaura Rolim Cavalheiro é ginecologista há 30 anos no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. É da chamada força de reserva do hospital e, junto com os colegas, mantém a normalidade do atendimento à população nas manhãs do HCPA. Cecilia Varella da Costa é internista e reumatologista, formada em 2011 na UFCSPA. Trabalha em seu consultório e nos hospitais Moinhos de Vento e Independência, esse último 100% SUS. É assim que depara, todos os dias, com as duas realidades distintas do sistema de saúde do Brasil.
Sobre trabalhar em um dos hospitais-referência desta pandemia, Rosaura diz que o HCPA tem oferecido todas as condições a seus profissionais. “Eu me sinto segura no hospital e também me sinto segura no meu consultório, com as minhas pacientes. Mas não me sinto segura do lado de fora.”
Cecilia: “As minhas consultas agora têm um tempo dedicado à covid. A gente acaba falando da situação atual. Eu costumo dar espaço para os meus pacientes expressarem o que estão sentindo e também divido os meus sentimentos com eles. É importantíssimo porque, na maioria dos casos, sou a única pessoa com quem eles têm contato. É uma troca muito rica”.
É o mesmo sentimento de Rosaura. “Nossa vida mudou e a dos pacientes, também. Eles nos buscam com o olhar e nós retribuímos com ciência e atenção.” A defesa da ciência é mais uma afinidade, entre as tantas que elas têm. As duas acreditam, por exemplo, que o teleatendimento veio para ficar, uma opção a mais da Medicina que vai estabelecer uma nova relação médico-paciente. Rosaura: “Eu uso a ciência para me orientar e às minhas condutas. Sempre foi e sempre será assim”.
Sobre a maneira como o Brasil tem tratado a pandemia, Cecilia diz: “O que me choca é ver discussões relacionadas à saúde serem pautadas por vieses ideológicos. A crise sanitária foi transformada em crise política. Acho que falta um alinhamento de discurso no nosso país. A gente tem um líder que está de um lado, e a ciência está no outro. Enquanto isso, a pandemia cresce com números absurdos e pessoas sem nenhum conhecimento técnico dão pitaco sobre o remédio X ou Y”.
A reumatologia, especialidade da doutora Cecilia, é uma das que mais se utiliza da hidroxicloroquina. Com a recomendação indiscriminada do remédio, inclusive como prevenção, muitos pacientes ficaram sem a medicação, principalmente os do Interior. Ainda assim, no meio do caos, Cecilia é otimista. “Passamos por uma fase de negacionismo, de pensamento mágico, com blogueiros de jaleco defendendo o abandono da medicina tradicional, coisas sem evidência científica e que expõem o paciente a riscos. Agora a população está vendo profissionais sérios e éticos falando na televisão, dando entrevistas. O conhecimento científico nunca foi tão acessível quanto nessa crise. Espero que a ciência ganhe voz a partir de agora.”
O isolamento que receitam a seus pacientes, Rosaura e Cecilia também praticam. “Sinto falta de visitar minha tia da Cidade Baixa. A tia do Nordeste perdi agora em julho. Não foi covid, mas não pude me despedir. Sofri. Sofro. Estou sensível e me emociono com as homenagens aos profissionais de saúde. Até as palmas nas janelas me emocionam.” Cecilia: “Não vejo minha família desde março. Meus pais, minha avó, meu irmão, todos são do grupo de risco, então eu optei por ficar distante. Ainda assim, tenho medo de trazer o vírus para casa, para o meu namorado, por mais que eu não tenha contato direto com a covid. Ocasionalmente avalio algum paciente com covid nos plantões e, claro, mesmo com todos os cuidados, a gente tem medo”.
Rosaura, casada com um médico, lê desde pequena e tem ouvido muita música. “Meus filhos tiraram do baú velhas histórias nossas e velhos videogames. Sou péssima, eles riem e nos divertimos. Engordei um pouco, mas não aprendi a cozinhar, e tampouco bebo vinho tinto. Fiz uma listinha de coisas que eu pretendo fazer quando passar a pandemia. Mas isso eu não posso contar”. Cecilia diz que nunca leu tanto como agora. “Os livros têm me ajudado a superar o isolamento social. Eu percebo agora que consigo viver sem muitas coisas materiais, mas não consigo viver sem música, sem filme, sem livro. E espero que, após tudo isso, a cultura seja reconhecida como um direito humano de primeira necessidade.”
Apesar do cansaço e das incertezas, elas seguem firmes. Rosaura: “Todos os dias, quando saio de casa, levo no rosto, debaixo da máscara, um sorriso que agora anda escondido. Sorriso que traduz a felicidade que, para mim, é trabalhar”. Cecilia: “Nós, médicos, não somos ensinados a lidar com a impotência, a gente se forma para lutar pela vida e, quando não se puder curar, ao menos, aliviar. Entendo as questões econômicas, mas eu sou médica. Por isso, prefiro acreditar que qualquer pessoa, com um mínimo de empatia, tem feito o possível para cuidar de si e das pessoas que ama”.
Para as doutoras Rosaura e Cecilia, e a todas e todos profissionais de saúde, muito obrigada por não desistirem da gente.