A gente, que tem casa e condições para sobreviver, se queixa da quarentena por razões bem diferentes daquelas de quem não consegue sequer sacar o tal auxílio emergencial – e são muitos os que não conseguem. Mães solo com filhos, conheço várias. Um amigo que passou todo o ano de 2019 sem emprego não teve direito porque, em 2018, ainda trabalhando, teve renda. Nossos governantes consideram que alguém nessa situação fica olhando para os contracheques passados e se alimenta deles, só pode.
No meio de tudo isso, a psicóloga e roteirista Gabriela Altaf, mineira de Juiz de Fora que vive há 22 anos no Rio de Janeiro, começou um projeto a partir, justamente, de um inesperado desemprego. Ela conta: “O programa de TV em que eu trabalhava foi suspenso por causa da pandemia. E Copacabana, o bairro onde eu e meus pais vivíamos, tinha o maior número de vítimas fatais pelo coronavírus. Decidimos ir para Juiz de Fora, passar a quarentena na cidade da nossa família. Assinei a rescisão do contrato pela manhã e,
à tarde, chegamos em Minas, para ficar no apartamento onde meus avós, já falecidos, moravam”.
Foi depois de higienizar e arrumar tudo, vendo uma pintura no banheiro da casa dos avós, que ela teve um estalo. “Era uma pintura que povoou a minha infância inteira. E que acionou uma série de lembranças do meu corpo de criança. Eu achava que aquela pintura fosse um portal para algum castelo e agora estava ali, no meio de uma quarentena, preocupada em ajudar meus pais e a fazer o possível para sairmos dessa vivos.”
A pintura – que, no fim das contas, continuava a ser um portal, mas agora para uma possibilidade de sobrevivência na vida adulta – foi o ponto de partida para o projeto Memórias do Corpo na Quarentena. “Quis pensar quais seriam as memórias que os nossos corpos estariam arquivando neste momento. Saudades, lembranças, dores, superações, angústias? O que, para além do medo da contaminação, estaria sendo arquivado em nossas peles durante o período de confinamento?”. Foi nesse momento que nasceu o documentário agora em produção.
“Bell Hooks, a autora feminista, pondera que transitar entre o silêncio e a fala é um gesto desafiador, que cura. Eu venho da Psicologia e a fala, para mim, realmente tem esse poder libertador. Quis, então, convocar as pessoas a falarem sobre seus corpos e sua relação com eles neste momento que estamos passando.”
Gabi postou um convite no Instagram e, para surpresa dela, começou a receber relatos não apenas de amigos, mas de desconhecidos de dentro e fora do Brasil.
Era preciso canalizar a energia para tentar criar algum sentido no meio desse caos que é a pandemia e que é o Brasil hoje
GABRIELA ALTAF, PSICÓLOGA E ROTEIRISTA
“Eu estudo o corpo há quase 10 anos. Foi tema do meu mestrado, da minha primeira série de documentário, do meu primeiro curta-metragem. O projeto veio da necessidade de tentar transformar a tristeza pela demissão, e por tudo o que esse momento tem trazido, todas as mortes, todo o descaso e irresponsabilidade deste governo, em alguma ação que me ajudasse a não paralisar diante da tragédia. Era preciso canalizar a energia para tentar criar algum sentido no meio desse caos que é a pandemia e que é o Brasil hoje.”
“Temos quase 70 relatos já, das mais diversas e impensáveis vivências. Desde as mudanças físicas – no cabelo, na menstruação, na pele, no intestino, às mais subjetivas...Tem a menina que, longe dos olhares de preconceito, descobriu que seu corpo gordo, como ela o descreve, ama dançar e passou a soltar a franga em frente ao espelho. Já Flávio, jovem gay, vive a casa na quarentena como prisão, pois, não sendo assumido para a família, narra como tem tido que controlar seu corpo, seus gestos mais espontâneos, para não
dar pinta.”
Além de documentário, Memórias do Corpo na Quarentena também vai ser um livro, com renda revertida para as famílias afetadas pela covid-19. Gabriela já está em busca de uma editora parceira para entrar na empreitada.
Quer mandar um relato? É só entrar no Instagram
@memoriasdocorponaquarentena.
E deixar o seu corpo falar.