A Lancheria do Parque viveu e construiu a história das últimas quatro décadas da cidade de Porto Alegre. Não à toa, é considerada um patrimônio afetivo para os moradores da Capital e dispensa qualquer apresentação. O que a torna tão especial, no entanto, é o papel que assumiu na vida de cada cliente.
– Entrou o do sanduíche com ovo e bastante queijo ou o da omelete com dois ovos – exclama Neomar Turatti, um dos sócios, ao contar sobre o cotidiano na Lancheria.
Ele acredita que a intimidade criada diariamente com cada cliente é responsável pela relação de afeto com o restaurante e pelo sucesso dos tradicionais lanches, como o xis de coração, os sucos e o buffet que emenda o almoço com a janta. “Aprendemos os gostos de cada um”, confessa.
A clientela por lá é fiel, tanto à frequência, quanto aos pedidos. Assim, os atendentes e funcionários acabam decorando as preferências de cada um que entra todos os dias pela porta. Quem assume a chapa já conhece o jeito que aquele que acabou de entrar costuma pedir seu xis, e o funcionário que está à frente dos liquidificadores incansáveis sabe que ele não gosta de mamão no suco.
Nessa intimidade construída entre o balcão e a cadeira, Neomar já sabe até o dia que não pode brincar com o time do cliente, já que perdeu no último jogo. A Lanchera, apelido dado carinhosamente pelos frequentadores, é a prova de que a gastronomia transcende o prato: é também questão de humanidade.
Do balcão, o Seu Neomar já viu a boemia porto-alegrense festejar até altas horas, quando a vida noturna na cidade era no bairro Bom Fim, por volta dos anos 80. Viu os políticos lançarem suas candidaturas e depois pararem para lanchar. Acompanhou de perto músicos e artistas que frequentavam as mesas por lá desenvolverem suas carreiras, como as bandas Cachorro Grande e Papas da Língua. Não importa para quão longe as turnês os levem, eles sempre voltam para prestigiar o local e a amizade com os atendentes.
Todas essas memórias foram construídas ao som da trilha sonora particular da Lancheria: “Saí um suco misto sem açúcar e gelo. Saindo um xis de coração sem ervilha”
Desde sua inauguração, em 1982, os pedidos são anunciados no grito. O som ambiente se tornou a marca registrada do lugar. Pergunto ao Neomar como eles fazem para não se perderem com tantos pedidos e nenhuma comanda. Ele brinca que já teve gente que “não aguentou o ritmo e pediu pra sair com apenas um dia de trabalho”.
É preciso agilidade e ouvido antenado para trabalhar por lá, mas principalmente atenção aos detalhes. O que não é escrito no papel, é gravado na memória. O olho no olho é o bom e velho segredo para criar identificação com os clientes. É o que torna cada lanche do menu algo exclusivo da casa.
A particularidade da Lancheria foi capaz de atravessar anos de mudanças no cenário econômico e gastronômico da cidade. Bares e restaurantes próximos que fecharam, novas tendências gourmetizadas de lanches que vieram com força. Nada disso abalou o cardápio simples e clássico de torradas, pastéis, à la minutas e comida caseira - todos com preço justo e bem caprichado.
De portas fechadas
No período da pandemia, foi um episódio sem igual na história da lancheria. Nunca ficaram tanto tempo de portas fechadas. Os cafés da manhã diários, os almoços no buffet e os sucos aos sábados depois de uma tarde na Redenção nunca ficaram tanto tempo fora da rotina dos porto-alegrenses. O lugar é conhecido por raramente fechar, somente no Natal e em ocasiões específicas, como finais da Copa do Mundo.
O que parecia ser uma pausa de poucos dias se estendeu por meses e já não sabiam mais como sustentar o negócio. Foi preciso demitir todos os funcionários. Ivo Salton, um dos fundadores da Lancheria, limpava todos os dias o balcão, no mesmo horário que costumava abrir, na esperança de voltar ao serviço logo.
Depois de sete meses, em novembro de 2020, o espaço de toldo vermelho da avenida Osvaldo Aranha reabriu aos aplausos de clientes que, desde às seis horas da manhã, já aguardavam ansiosamente por esse momento. A emoção não se conteve aos clientes. Neomar conta que, antes de entrar, os funcionários recontratados se ajoelharam na porta. Uma forma de agradecer mais um episódio da história vivido e superado pela Lanchera.
Espaço democrático
Os punks da década de 80, estudantes e festeiros que paravam para tomar uma cerveja gelada à noite tiveram seus filhos que, agora, também frequentam a Lanchera. Algumas famílias estão há três gerações frequentando o espaço.
“Meu vô trouxe meu pai. Meu pai me trouxe quando eu era pequeno e agora eu frequento aqui", conta o sócio sobre os relatos dos clientes. De crianças, jovens a idosos: a Lancheria sempre foi um espaço democrático para todos os públicos e idades.
Durante estes anos, Neomar diz que já aprendeu com as mudanças de gerações. Diz que a Lancheria é um lugar “para todas as tribos”.
– Quando a gente começou fazendo suco aqui, ia um caminhão de açúcar. Agora, ninguém mais pede com – , brinca ao comentar sobre a tendência saudável dos clientes mais jovens.
Para encerrar, pergunto o que ele espera dos próximos anos da Lancheria. Com toda humildade e satisfação, responde: “que continue sempre assim.” Acredito que esse seja o desejo de todos os porto-alegrenses.
LANCHERIA DO PARQUE
Endereço: Av. Osvaldo Aranha, 1.086, no bairro Bom Fim
Fone: (51) 3311-8321
Horário de atendimento: aberto todos os dias, das 6h30min às 00h