Quando Max Skinner descobre que herdou uma vinícola do tio bon-vivant, na França, logo viaja para se desfazer da propriedade. Bem-sucedido, o homem de negócios pouco se preocupa com o passado, em que vivenciou o mundo da viticultura durante a infância. Alguns imprevistos depois, ele acaba sendo obrigado a passar uma temporada no local. Inevitavelmente, conhece melhor os caseiros, se apaixona por uma mulher misteriosa e redescobre o sentido para uma vida boa em meios às parreiras e ao vinho.
O cenário do filme Um Bom Ano, de 2006, inspirou Eduardo Giovannini a construir sua própria residência dentro da Quinta Barroca da Tília, uma pequena vinícola no distrito de Águas Claras, em Viamão. A casa, tomada por trepadeiras, tem janelas grandes, espaços para degustar uma ou duas garrafas, além de uma estrutura superequipada e tecnológica para vinificar as uvas e transformá-las em mais de 30 rótulos brancos, tintos e rosés.
Quando Natália Frighetto, colunista do Destemperados, enóloga e sommelière, nos convidou para conhecer o local, jamais imaginei que estaria visitando um dos meus filmes preferidos, mesmo estando a poucos minutos de casa ou sem ter emitido meu passaporte. Silenciosa, arborizada – incluía um imenso butiazeiro – e linda, a propriedade remetia tranquilidade e me levava para um outro lugar. França? Itália? Argentina? Não sei responder, mas estava bem longe do que eu imaginava.
Depois de nos receber em um quadriciclo, Giovannini nos apresentou às parreiras em espaldeiras que ele conduz com tanta maestria. Eu já tinha visto algumas parecidas na Campanha Gaúcha, onde eram plantadas uvas tannat. Mas lá o chão era mais firme e verde. Na Quinta, o chão é arenoso, quase movediço. A explicação é a proximidade com a praia. Há 450 mil anos, o mar chegava até onde pisávamos naquele instante. Hoje, está a alguns quilômetros.
Natural de Porto Alegre, é engenheiro agrônomo, mestre em fitotecnia e doutor em engenharia de recursos hídricos e saneamento ambiental. É autor de cinco livros sobre vitivinicultura e fez parte da equipe que criou o primeiro curso superior de viticultura e enologia do Brasil, na cidade de Bento Gonçalves. Desde 2010, tem como papel principal a produção familiar de vinhos na sua quinta.
QUANDO VOCÊ ACHA ALGO BOM, DEVE CUIDAR DISSO
Por lá, as uvas são cuidadas minuciosamente por eles, pois não só Giovannini se dedica à paixão pelo fruto. A família, contando ainda com dois funcionários, dois cachorros, dois cavalos e dois potros, está envolvida na produção. O professor fica com o plantio, com o cuidado na evolução de cada uva e com a colheita. Simone, sua esposa, fica com a elaboração de cada vinho. Maria Vitória, uma das filhas do casal, formada em Arte, é responsável pelos rótulos e pela identidade visual da marca.
Acredito que quando o tio Henry diz que “quando você acha algo bom, deve cuidar disso. Tem que deixar crescer”, transcende o cuidado com as uvas, com as parreiras ou com o chão arenoso. É sobre cuidar da experiência como um todo. Do início ao fim do trajeto. É receber com sorriso, mesmo tímido. É detalhar, ensinar, explicar. E isso é parte inerente de Giovannini, por óbvio. Plantar e colher, acredito, o fez um grande professor, até mesmo para quem não é seu aluno.
Ao passar pelas parreiras, nos apresentava uma casta diferente e, com orgulho, falava sobre seus diferenciais. Do norte de Portugal, a alvarinho é uma de suas queridinhas. Mas as tentativas foram mais de 30 tipos. A ideia da família é essa: nova região, novas uvas, novo estilo.
— Não adianta fazer merlot, cabernet, chardonnay, que na loja ou no supermercado tem 30, 40. Estamos focando em coisas boas e diferentes — diz Giovannini.
Assim, ficaram uvas como: mourvédre, alvarinho, marselan, alicante bouschet, vermentino, touriga nacional e nebbiolo.
— O nebbiolo é um caso mais nosso mesmo. Pouca gente tem, pois existem os macetes da poda e do cuidado — explica.
VAI ME TIRAR A ÚLTIMA OPORTUNIDADE DE IMORTALIDADE?
A fama da casta é antiga na cidade. Produtor de vinho, Oscar Guglielmone era tido como gênio. À frente da Adega Medievel, produziu uvas que quase ninguém se arriscava na época: gamay, cabernet sauvignon, moscato, entre outras. Foi da sua mente visionária que saiu o melhor vinho tinto brasileiro, de 1983, para o saudoso Guia Quatro Rodas. Morto na sua própria adega em 1993, Guglielmone imortalizou algumas garrafas, deixou a cidade de Viamão conhecida Brasil a fora e perpetuou a nebbiolo no solo arenoso da região.
— A gente conhecia ele. Ia lá nos finais de semana. Às vezes, nem comprava nada. Era mais pela diversão. Fiquei com a ideia, estudei clima e solo... Aqui é areia, tem lugares que parecem areia da praia. A explicação dos geólogos é de que isso aqui é o recuo do oceano, a primeira mexida que o mar deu para trás formou essa coxilha — explica.
Na terra, o solo é pobre, mas o adubo salva, conta Giovannini. Drena fácil, o que é bom para que não fique empoçada a água. Chove bem menos do que na Serra. É mais ensolarado. Tem mais vento.
Nada disso, porém, impede que vinhos de muita qualidade sejam elaborados na propriedade. No site da Quinta, eles ainda elucidam: “esta imprevisibilidade padrão, apreciada como inspiração, faz do ofício vinhateiro na Quinta Barroca da Tília a atividade experimental em essência, pois se espera a cada ano pelas possibilidades quase infinitas de safras peculiares”.
ESSE NÉCTAR É INCAPAZ DE MENTIR
Depois de ver as uvas, as parreiras, o solo, os cachorros e os cavalos, fomos, então, atrás dos vinhos. Não sem antes visitar o local onde a magia acontece. Giovannini nos levou aos tanques. São 14 no total. Eles podem produzir até 30 mil litros de vinho por ano. Mas nunca chegaram a esse volume. A média é de 20 mil.
Lá, eles trabalham com o conceito de enologia de baixa intervenção, sempre de caráter experimental. Tintos com uvas brancas, uvas brancas vinificadas com as cascas, uso de leveduras selecionadas e muito mais.
— Outra jogada que a gente faz é misturar as uvas. Não faz corte de vinhos. Elas entram no tanque juntas, então, quando vai ser cabernet com merlot, já vai as duas juntas. Se chama co-fermentação. Na Toscana faziam isso muito antigamente — conta com orgulho.
Apesar do estilo barroco, a tecnologia é uma aliada da família. Antes fechados por rolhas de altíssimo nível, os vinhos agora são envasados com screw cap, as tampas de rosca. O maquinário, adquirido por eles há pouco tempo, veio para aposentar de vez as rolhas tradicionais. O que para muitos pode ser considerado um erro, já que defendem a cortiça como uma cúmplice da longevidade da bebida, para Giovannini é uma opção importante para manter todas as propriedades do vinho intactas a curto ou longo prazo.
De boas-vindas, Vitória abriu um espumante delicioso, mas que não era elaborado ali na Quinta. Depois, acompanhando queijos e pães torradinhos, provamos o Muros Velhos, um tinto leve, límpido e de retrogosto frutado. Foi surpreendente no paladar, mas especialmente no visual. A uva de origem é a mourvédre, casta que a vinícola é pioneira no Brasil.
Naquele mesmo dia, levamos para casa uma garrafa cada uma. Eu, por sorte do destino ou pela força dos meus pedidos ao universo, fui agraciada com um Corvos Anjos, de 2022, que une a tinta nebbiolo e a vermentino, essa última em menor quantidade. Talvez por isso a cor do rosé tenha sido tão densa. Provei-o em baixas temperaturas e altas expectativas. E elas foram atendidas, claramente. A garrafa, apesar da possibilidade de armazenamento mesmo depois de aberta, graças à tampa, foi consumida em uma linda noite estrelada — acredito. E acredito mesmo, porque, assim como tio Henry disse no filme, o vinho é incapaz de mentir.
VINDIMA NA QUINTA
Se você, assim como eu, também ficou curioso com o nome, a explicação de Giovannini é breve. Quinta é o nome correto para aquele pedaço de terra. Barroca por uma tentativa de ter um estilo barroco de produção, com simetria. E Tília por causa da árvore de mesmo nome, muito comum na Europa, que tem copa alta e volumosa, e dá flores amarelas muito aromáticas.
É nesse lugar de mais de três hectares que a família espera visitantes para degustação de cinco rótulos harmonizados com comidinhas, visita guiada pelos parreirais lotados e uma verdadeira aula sobre solo, clima, uvas e vinhos. O próximo evento ocorre no dia 2 de março, às 11h, com vagas limitadas. Mais informações pelo WhatsApp (51) 99619-1992.
Que os vitivinicultores inquietos continuem plantando castas únicas, envasando vinhos singulares e nos presentando com a imortalidade de suas genialidades. Que sigamos tendo um bom lugar para voltar.
Um brinde à Viamão e toda sua história de bons vinhos!
QUINTA BARROCA DA TÍLIA
Endereço: Estrada do Cartório, distrito de Águas Claras, em Viamão
Telefone: (51) 99619-1992
@quintabarrocadatilia