Patrícia de Mello Sanfelici Fleischmann (*)
As entrevistas da atriz e cantora Larissa Manoela ao Fantástico trouxeram à luz um tema que talvez, até hoje, não tenha merecido a devida atenção: o trabalho infantil artístico, suas particularidades e consequências. Aproveitar esse momento para fazer essa reflexão é fundamental para melhor compreendermos do que se trata, a fim de enfrentar, com mais serenidade e lucidez, as situações que surgem.
Inicialmente, é necessário lembrar que a Constituição Federal (CF) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelecem o princípio da proteção integral à infância, o que significa dizer que crianças e adolescentes devem receber atenção prioritária, absoluta e integral de todos, em qualquer circunstância. Logo, ninguém se exime do dever de proteger a infância de toda e qualquer agressão, sendo certo que o trabalho precoce se enquadra como uma das violações de direito a serem combatidas.
Especificamente sobre o trabalho infantil, tal prática é proibida no Brasil antes dos 16 anos, salvo na condição de aprendiz, que se admite s partir dos 14 (artigo 7º, inciso XXXIII da CF). De modo geral, essa é a regra a ser observada, não importando a jornada ou tipo de trabalho, ou se ele é remunerado ou não. Também não se justifica o trabalho infantil sob o argumento de que "a família precisa" — tal situação representa uma perversa inversão de valores, na qual a criança, sujeito a ser protegido, assume a responsabilidade de prover — o que não é admissível. Esse mesmo raciocínio se aplica ao trabalho infantil artístico, não sendo razoável que crianças artistas se tornem exclusivamente responsáveis pela manutenção de seu núcleo familiar, o qual, não raras vezes, passa a orbitar ao seu redor.
Não respeitar esses critérios é condenar os infantes a traumas que não conseguimos prever na totalidade. Se o trabalho, para quem é adulto, representa uma gama de riscos e dificuldades, quanto mais para aquele que se encontra em tenra idade, se preparando para a vida, não discernindo plenamente sobre tudo que está a ocorrer.
Porém, com relação ao trabalho infantil artístico, houve uma referência específica na Convenção nº 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil, que excepciona a idade mínima, mediante autorização judicial, em ato que terá obrigatoriamente a intervenção do Ministério Público e avaliará, entre outros requisitos, os seguintes: imprescindibilidade da participação da criança ou adolescente (ou seja, que a obra artística não possa, objetivamente, ser representada por maior de 16 anos); consentimento da criança ou adolescente, e autorização e acompanhamento permanente dos pais ou responsáveis; garantia de frequência escolar; o trabalho não se realizar em circunstâncias que possam trazer prejuízos à formação da criança ou do adolescente (valendo-se, para análise do caso concreto, inclusive de laudos médicos para aferir tal aspecto).
Tais exigências, previstas na Recomendação nº 98 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), são essenciais para garantir que a criança ou o adolescente, que se encontram em peculiar fase de desenvolvimento, possam viver a infância sem prejuízos, usufruindo de todas as possibilidades que essa etapa da vida deve traduzir. O objetivo da recomendação é orientar o membro ou membra do Ministério Público em sua atuação no caso concreto, como fiscal da lei e dos interesses da criança e do adolescente.
Não respeitar esses critérios é condenar os infantes a traumas que não conseguimos prever na totalidade. Se o trabalho, para quem é adulto, representa uma gama de riscos e dificuldades, quanto mais para aquele que se encontra em tenra idade, se preparando para a vida, não discernindo plenamente sobre tudo que está a ocorrer. A sociedade de um modo geral, e os responsáveis legais e os órgãos de proteção, especificamente, têm o dever de filtrar as situações, garantindo que crianças e adolescentes possam vivenciar sua infância plenamente. Certo é que situações de conhecimento público, já experenciadas por jovens artistas, demonstram que nem só de fama e sucesso esses pequenos vivem — muitas dores, muitas perdas, muitas frustrações também se encontram pelo caminho. Como lidar com tais questões, sem critérios claros e objetivos que estabeleçam o limite da exploração desse trabalho?
Que criança adora fazer arte, todo mundo sabe. Ser artista, inventor, mágico, faz parte do universo da infância, sendo esse um espaço importante na construção do lúdico do sujeito, aspecto que é fundamental para a vida adulta. Mas fazer arte, quando se torna trabalho, precisa ser visto com muito cuidado. E essa cautela, nós, adultos, temos a responsabilidade de cotidianamente exercer.
(*) Procuradora do Trabalho, coordenadora regional da Coordinfância do MPT-RS