Por Maria Carpi
Poeta e defensora pública, autora de, entre outros, “A Esperança Contra a Esperança” (AGE)
Não canso de afirmar que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é o mais belo poema social. Seu texto não partiu dos legisladores, mas da sociedade civil organizada, de sua experiência, não livresca, no cuidado cotidiano e no atendimento preferencial com a infância. Tive a experiência, como defensora pública, de participar da passagem da ideologia da exclusão do Código de Menores para a filosofia da proteção integral do ECA.
Não é apenas a proclamação de mais uma lei, por isso se reserva sabiamente o nome de estatuto. É uma ordenação.
Se antes as crianças e os jovens eram objeto de direitos, agora o ECA afirma que as mesmas são sujeitos de direitos, em condição peculiar de desenvolvimento, que demanda a proteção integral e prioritária da família, das instituições, da sociedade civil e do Estado. E, no elenco dos direitos da infância, surge essa beleza inigualável: o direito de brincar.
Minha experiência, como poeta, foi ler primeiro a natureza antes de abrir um livro. Temos de perceber o que vemos e nos alfabetizar nos sentidos antes das letras; alfabetizar na cordialidade, no trato com as pessoas e com tudo o que nos cerca. A criança precisa subir numa árvore, provar de seus frutos, antes de encontrá-la na palavra árvore. Necessita banhar-se nas águas de um rio, antes de o rio fluir na palavra escrita.
Sim, é bom dar livros à criança, mas, antes de tudo, a criança necessita brincar. Não são os adultos que ensinam poesia às crianças, se é possível ensinar, mas elas descobrem a poesia nas metáforas do brinquedo, pela translação de sentido em todas as esferas.
Agora, com os “brinquedos eletrônicos”, estão as mesmas sujeitas a um redoma que lhes rouba a infância. E a nossa educação do consumo também as atinge. Furtando o tempo lúdico do faz de conta do brincar, preenchemos o tempo com tarefas e mais tarefas. Ou, por serem pobres, as fazemos trabalhar para botar o pão na mesa de seus pais, vivendo em cortiços insalubres.
A poesia trabalha com a sensibilidade desde a infância. A sensibilidade, através das cordas das emoções, é um instrumento a ser afinado. E começa com o direito de brincar. Amestrar conhecimentos é tarefa da inteligência, mas nenhuma tecnologia supera a sabedoria de vir a ser uma pessoa sensível. A alta precisão de um cravo bem temperado.
Certa feita, indo a dar uma aula numa escola do Interior, subindo por uma rua, deparei com uma linda árvore em flor. No auditório repleto de pessoas, perguntei pelo nome da árvore. E, para minha surpresa, ninguém sabia, pois todos não tinham sequer percebido a árvore.
Não basta ver, mas perceber. As crianças percebem, aliando o direito de brincar ao direito de sonhar.
Outro dado importantíssimo do ECA é a municipalização do atendimento. Cada cidade, cada município deve ser responsável pela demanda da comunidade e gerir seus problemas. Como exemplo, cito que as comarcas, em vez de criarem um centro de saúde com médicos e atendentes, prontificavam-se em comprar ambulâncias a enviar seus doentes para o centro do Estado.
O mesmo acontecia com a infância em situação de risco. Qualquer problema a enfrentar, despachava-se para a antiga Febem, como mercadoria desvalida. Pois o ECA criou os Conselhos de Direito e os Conselhos Tutelares, para proteger o futuro da nação, nas próprias comunidades. Muitos dirão que nem tudo foi resolvido. Sim, com a mudança da lei, não ocorre a mudança de mentalidade. Temos de ter coragem de, com persistência, pouco a pouco, sair da ideologia da exclusão para a filosofia da proteção integral. E, com isso, honrar nossa cidadania, protegendo nossas crianças e reforçando o vínculo familiar.
Falando em vínculo familiar, ele se reforça quando os próprios pais fazem travessuras com suas crianças. Um pai jogando futebol na várzea. Um avô fazendo cambalhota no pátio. Uma mãe entrando no riacho com as saias até a cintura.
Somos exímios em defender direitos e relapsos em cumprir deveres. Em fortalecer laços corporativos, esquecendo de que somos uma comunidade. Nisso também o ECA é exemplar ao afirmar que é da responsabilidade de todos a proteção das nossas crianças. Ninguém se exime.
Acima dos laços de sangue, as crianças são o nosso bem maior.
E me permito pôr em versos o poema da biblioteca de meu primeiro colégio, em Guaporé:
Em minha primeira escola, havia uma biblioteca, que, sem advertir, abria janelas aos altos morros. Nenhum livro, tácito, dizia-me mais do que essas janelas. Nenhum livro, pálido, punha-me a verdura dos altos morros. Nenhum livro válido, nem o do paraíso, fazia-me estar ainda na sala, após a telepatia úmida de uma amora, luzente de um pardal, cativa de um veio sem remos ou de um cavalo em veredas, sem ninguém ao lombo, embrenhados, indefesos, nos altos morros, além da página, dos currículos e da íngreme tarefa de uma leitura silenciosa.
Desde aí essa letra que destoa e abre asas em toda fresta de livro. Desde aí essa tendência irreparável de escrever a palavra com grafia esdrúxula. De ouvi-la com inflexão errada, de pronunciá-la com a gíria da pedra na água e propor sua claridade com o escuro das ramadas umas contra as outras, a esfolar-me os joelhos nas rampas e rampas dos altos morros.
Exercendo o direito de brincar desde a infância, apelo pelo direito de se divertir com nossas crianças.