O Dia das Mães é completo há 10 anos no coração da Marina Dallegrave, 41 anos. Nos últimos dois, a data é celebrada com maior intensidade. Marina é mãe adotiva da Luana Dallegrave Bolfe, 29, e avó da pequena Louise, dois. A adoção de Luana abriu um precedente no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) pela diferença de apenas 12 anos entre a jovem e os "novos" pais:
— Troquei o pediatra pelo ginecologista, porque eu participei de tudo na adolescência e ainda participo. Eu sou a mãe dela, me sinto plena e realizada.
Proprietária de uma escola de Educação Infantil de Caxias do Sul, Marina não conseguiu ser mãe biológica. Ela tentou engravidar por anos, mas não obteve sucesso. Então, fez uma brincadeira com Deus, desafiando-o: já que Ele não queria lhe dar um filho, ela o buscaria na medicina. E ainda questionou: "O Senhor acha que meu filho vai bater na minha porta?". Marina relembra, emocionada, que Luana, literalmente, bateu a porta.
A ligação entre as duas teve início em 2010, quando Marina estava em fase de contratação de uma auxiliar no berçário da escola. Foi aí que conheceu Luana, que já tinha 16 anos. A jovem morava em um abrigo desde os cinco anos. No início da adolescência, ela sonhava em ser assistente social. Como não tinha perspectiva de ser adotada e precisava pensar no futuro, a jovem ingressou no magistério. O intuito era receber recursos financeiros para se sustentar após os 18, quando sairia do abrigo. Por isso, em junho de 2010, buscou uma vaga de estágio na área da educação.
— Quando eu me direcionei para ela, só vi as pernas da Luana e meu coração já disparou, uma sensação de choro bem forte — conta Marina, relembrando do momento em que a viu pela primeira vez.
A convivência diária e a forte ligação emocional que tinham expandiu para fora do ambiente de trabalho. Luana foi convidada por Marina e o então esposo dela, Gilson, para passarem juntos um final de semana. O abrigo liberou a adolescente várias vezes até que, em setembro de 2010, Luana ficou de forma definitiva com a nova família, que conquistou a guarda provisória.
— Eu não queria mais voltar ao abrigo. Jamais imaginei que seria adotada. Sinto um amor muito grande pelos meus pais adotivos. Eles me proporcionaram vida. Depois que conheci eles, eu comecei a viver — avalia a jovem.
Marina afirma que desde as primeiras semanas já incluiu a adolescente no plano de saúde e começou a cuidar dela. Apesar do amor, a jovem por outro lado desafiou os pais no início para ter certeza de que eles não desistiriam dela. Ao fugir de casa, os testou, mas Marina a acolhia cada vez mais:
— Em uma das vezes a minha mãe disse: "Luana tu podes fugir, podes ir aonde quiser. Mas quando precisares, podes voltar para o teu lar".
Os anos passaram e a família cresceu. Hoje, Marina e Gilson estão separados. Mas Luana segue sendo a filha única do casal e os presenteou com a netinha Louise. Luana e Marina ainda trabalham juntas na escolinha.
Andamento do processo
O processo de adoção de Luana não foi nada fácil. Dois anos depois de terem conquistado a guarda provisória, os novos pais da jovem fizeram um pedido de adoção por meio do advogado Rafael Tissot. Em primeira instância, 15 dias depois, o juiz indeferiu. A sustentação foi devido a orientação do ECA sobre a diferença de idade entre mãe e filha. Naquela ocasião, a família sequer foi ouvida, segundo Tissot.
Ao recorrer, na Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre, os desembargadores reencaminharam o processo para a 1ª Vara, solicitando a avaliação do juiz. Tissot argumentou que, mesmo quando os pais são biológicos, muitas vezes não existe uma diferença de 16 anos com os filhos. E, utilizando o próprio ECA, defendeu os direitos e deveres que Luana tinha em relação a ter uma família. Em 2013, o juiz Leoberto Brancher, enfim, disse “sim” para a adoção.
— Foi o dia mais feliz da minha vida — emociona-se Luana.
Brancher, mesmo não atuando mais na Vara da Infância de Caxias, relembra do caso. Segundo ele, foi uma adoção que o marcou pela família Dallegrave ser jovem e estar tão convicta da vontade de adotar Luana:
— Eles já tinham uma relação muito forte, tinham estabelecido um vínculo importante com a adolescente. Então, achei que a situação da vida era mais importante que a lei.
O então desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul atuou em Caxias em duas oportunidades, entre 1995 e 1998, retornando entre 2011 e 2019. Brancher destaca que, ao longo destes períodos, muitas pessoas passaram pela sua avaliação e que alguns casos foram marcantes, como o da família Dallegrave. Ele ainda as acompanha pelas redes sociais.
Luana como mãe da Louise
A experiência de Luana vivendo no abrigo, sem a presença da mãe, moldou a perspectiva e o tipo de mãe que ela é e deseja ser para a Louise. Ela conta que ainda sente um vazio no peito porque gostaria que a mãe biológica a tivesse criado, independentemente da condição social em que viveriam. Mas, hoje, ela preenche essas pequenas lacunas com as condições que proporciona a filha:
— Sou uma mãe bastante protetora e dedicada, exatamente a mãe que eu gostaria de ter tido na mesma idade. Costumo dizer que o amor é tão intenso que chega a doer — conta Luana.
Ser mãe biológica permite a Luana ter experiências que ela nunca teve. Segundo ela, há poucos dias esteve no shopping passeando com a filha e ela lhe pediu um brinquedo. Ao olhar o preço, achou acessível e o comprou. Ao chegar em casa, guardou as compras, sentou-se no sofá e agradeceu a Deus por ter condições de proporcionar alimentos e brinquedos para a filha, ao contrário dela, que só teve essa chance a partir da adoção, após os 16 anos.
— A ausência despertou um desejo ainda maior de ser uma mãe presente e amorosa para a minha filha. Essas coisas simples é que fazem a diferença.
Apoio aos demais interessados em adotar
Marina Dallegrave atualmente auxilia, de forma virtual, pessoas que querem entrar na fila da adoção. As atividades envolvem mentorias, orientações jurídicas e grupos de apoio que deixam a adoção mais leve. O contato com Marina é pelo Instagram: @marinadallegrave.
— Eu estou aqui para dividir essa minha experiência. É possível se realizar como mãe com a adoção e, principalmente, com a adoção tardia. Ser mãe vai além de trocar fraldas ou gestar, ser mãe é uma doação infinita por amor — acredita Marina.
Para as crianças que estão acolhidas nos abrigos de Caxias do Sul, Luana envia uma mensagem de esperança:
— Vocês são valiosos, dignos de amor e cuidado. Sigam em frente, mesmo com a vontade de desistir. Enquanto há vida, há esperança de viver.
Cada caso é um caso
O juiz da 2ª Vara Cível do Fórum de Farroupilha e responsável pelo juizado especial da Infância e da Juventude, Mário Romano Maggioni, também já abriu precedentes nos casos de adoção. Maggioni destaca que o ECA é apenas um regulador dos direitos.
— Eu garanto o direito fundamental a um lar que cuide bem deles. Perfeito, nenhum pai vai ser, mas tem que ser o suficiente — comenta o juiz.
A regulação dos 16 anos de diferença não tem uma explicação pela lei, mas é de entendimento do juiz que seria uma diferença natural para que a mãe tenha uma filha biológica. Também para que haja um cuidado, onde o adotante não use o adotado para cunho sexual ou outros atos criminosos.
Há mais de sete anos em Farroupilha, o magistrado constata que os adolescentes são os menos procurados para adoção. As crianças até oito anos são facilmente encaixadas em uma família. Mas, depois dos 10, enfrentam maiores dificuldades para encontrar uma família:
— Hoje, o único adolescente para ser adotado em Farroupilha é um menino de 15 anos. E não há pessoas habilitadas que possam acolhê-lo — relata Maggioni.
No caso do adolescente, o juiz explica que, caso uma família tenha interesse em acolhê-lo e os pais não tenham a diferença de idade exigida pelo ECA, mesmo assim ele vai encaminhá-lo para adoção. Na visão de Maggioni, não é justo com o jovem barrar a oportunidade caso os pais passem por todos os demais processos e sejam habilitados.
Outra orientação do ECA, segundo o juiz, é que algumas pessoas com mais de 60 anos não podem receber adotados e nem avós adotarem legalmente um neto. Porém, na comarca de Farroupilha, sob os olhos do juiz, independentemente de idade, sexualidade e demais circunstâncias se ambos (adotantes e adotados), ao passarem pela assistência social e psicólogas e serem aprovados nos processos, uma nova família será formada.