A televisão aberta narrou a história do Brasil nas últimas sete décadas. E a tecnologia andou lado a lado com a TV, que foi evoluindo, recebendo cores, se tornando plana, fininha, digital, com alta resolução e, atualmente, integrada à internet – mas não para por aí. Raymundo Barros, 59 anos, diretor de Estratégia de Tecnologia da Globo, tem grandes ambições para o futuro do meio de comunicação no país. O executivo, que trabalha há 40 anos na emissora, liderou iniciativas de grande relevância para a indústria de mídia, como o projeto de ampliação da digitalização da TV, o 4K na produção e distribuição de conteúdo, o Globoplay e a integração das áreas de tecnologia das empresas do Grupo Globo. Agora, 15 anos depois do lançamento da TV digital no país, ele trabalha para trazer uma nova tecnologia para os brasileiros: a TV 3.0. Nesta entrevista, fala sobre a relevância da TV aberta em meio à era do streaming e como a evolução tecnológica mudará a forma de o espectador consumir conteúdo.
Em um país como o Brasil, qual é a importância da TV aberta?
Acho que essa resposta já está estabelecida há 70 anos. A TV se tornou o principal meio de comunicação, com uma penetração que beira os 100% e tem atributos que ainda hoje são raros no ambiente digital: o alcance, a transparência representada pelos concessionários da radiodifusão, que em sua grandessíssima maioria são empresas sérias, e a gratuidade, que é um aspecto muito relevante em um país de tanta desigualdade. Então, o fato de a televisão ser uma senhora moderna, bem conservada e que segue se renovando garante a ela a manutenção dessa relevância.
Houve um salto tecnológico na TV aberta nos últimos anos, com o modelo digital substituindo o analógico. Essa tecnologia já está totalmente implementada?
Em 2007, houve o lançamento da TV digital brasileira, introduzindo alta definição, com uma imagem que tem quatro vezes mais qualidade do que a TV analógica. E acabava com o famoso Bombril na antena, com imagens com fantasmas e chuviscos. Isso, então, é um marco, e hoje a TV digital já chega a 90% dos lares. A expectativa é de que, com o projeto Digitaliza Brasil, promovido pelo Ministério das Comunicações com todos os radiodifusores, no ano que vem esse número será de 100%.
A TV digital, chamada TV 2.0, marcou a necessidade de uma nova geração de aparelhos. Apenas 15 anos depois, já se fala na TV 3.0. O que significa esse avanço em um espaço tão curto de tempo?
A TV em preto e branco, da década de 1950, foi a primeira geração. Depois veio a que chamamos TV 1.5, que foi a TV a cores e com áudio stereo, que chegou nos anos 1970. A TV 1.5 não demandou troca de aparelho, pois quem tivesse um televisor preto e branco podia seguir usando-o sem restrições. A TV 2.0, que é a digital, faz com que os aparelhos anteriores parem de funcionar, a não ser que houvesse o famoso decoder. Em 2021, nós lançamos a geração 2.5, que traz inovações importantes: áudio imersivo, em que o som vem de todos os lados, e um novo padrão de interatividade, chamado de DTV Play, que permite uma integração dentro do televisor dos conteúdos que são consumidos pela internet e pela TV aberta, além de uma ampliação da faixa dinâmica de cores, que é o HDR. E, desde o ano passado, nós estamos discutindo no Fórum do Sistema Brasileiro de TV Digital o que chamamos da TV 3.0. Neste caso, sim, estamos falando de um modelo que não tem necessariamente compatibilidade com os televisores que existem hoje.
O que vai mudar a TV 3.0?
A TV 3.0 já foi lançada nos EUA e na Coreia do Sul. E nós tivemos, agora em abril, o maior evento de tecnologia da indústria de mídia e entretenimento, realizado anualmente em Las Vegas, o NAB Show, e eu tive o privilégio de participar e estar em diversos painéis e fiquei bastante surpreso com o quanto a TV aberta está renascendo nos EUA, ganhando relevância em função, principalmente, desse novo padrão. A TV 3.0 pode ser definida como um conjunto de tecnologias que estarão integradas nos vários dispositivos. Estou falando dos televisores, dos computadores, dos celulares. Ou seja, todo e qualquer dispositivo que tenha uma tela. Esses dispositivos serão capazes de receber conteúdo de uma maneira completamente integrada, entregues pela internet, pelas redes 5G e pelas operadoras de TV paga. Tudo ocorre por meio do que a gente chama de um broadcast app, que é um aplicativo que representa toda a oferta de conteúdo que uma empresa de mídia tem. No caso da Globo, por exemplo, toda a oferta de seus canais de TV aberta e conteúdos do Globoplay terá uma única interface visual. E não é só isso. A qualidade de imagem é ampliada para os padrões 4K e 8K. O padrão 4K é quatro vezes mais qualidade que a TV HD que a gente tem hoje. E o padrão 8K é quatro vezes mais qualidade em comparação com o 4K. Então, as telas dos televisores nas casas das famílias podem crescer indistintamente. Existe, por sinal, uma tendência de que os nossos televisores poderão ser ampliados, com upgrades de painéis, como se fosse um quebra-cabeça, que eu vou montando e essa tela vai crescendo. Esse padrão em 4K e 8K permite telas muito grandes, de cem, 200 polegadas, com qualidade muito boa. A TV 3.0 tem ampliação da qualidade de imagem, da imersão e da distribuição espacial do áudio.
A TV 3.0 é um conjunto de tecnologias integradas nos vários dispositivos: TVs, computadores, celulares. todas as comodidades que a gente tem na internet ficam disponíveis para a radiodifusão.
Qual é o benefício para as emissoras?
Vamos falar de Porto Alegre e da Região Metropolitana. Hoje, na RBS TV, você tem obrigatoriamente a mesma programação e a mesma comercialização para todas as localidades dessa região. Com o padrão da TV 3.0, poderá haver a segmentação. Isso significa que o mesmo transmissor que fica em um morro em Porto Alegre terá um desenho das áreas de cobertura, permitindo que eu tenha em Viamão uma comercialização específica para atender aos comerciantes daquela região e as pessoas que moram ali. Posso ter, também, um jornalismo mais focado em blocos de telejornal específicos para cada uma das cidades da região. A segmentação geográfica abre um espaço muito grande para que os radiodifusores permitam, planejem e pensem em modelos de negócio para melhor atender a sua comunidade. Com a TV 3.0, será preciso um transmissor novo, ou seja, há a demanda de investimentos por parte de todas as emissoras, e as pessoas terão de comprar um televisor novo também. Estamos falando de uma tecnologia futura e, dentro dela, o consumidor também poderá ter uma integração natural do celular com o televisor. Lembrando que nós teremos o 5G começando no país ainda neste ano, e a TV 3.0 irá utilizar elementos de tecnologia semelhantes aos que existem nesa rede. Assim, todas as comodidades que a gente aprendeu a ter na internet ficam disponíveis também para a radiodifusão.
Vale a pena fazer os investimentos necessários, tendo em vista que a internet ganha espaço inclusive com transmissões ao vivo de conteúdo?
Hoje, aqui no Brasil, o recorde simultâneo de acesso a um conteúdo distribuído apenas pela internet é de 4 milhões de pessoas. Essa é a audiência que a Globo tem às 3h da manhã. É só para dar o exemplo de que a distribuição pela internet, hoje, não permite que haja 100 milhões de pessoas assistindo ao mesmo programa, ao mesmo tempo. A internet não tem essa capacidade, nem Brasil, nem nos EUA. A TV aberta, a radiofusão, é o meio que tem e terá, em um futuro de muitos anos, a prerrogativa de levar o mesmo conteúdo para milhões e milhões de pessoas simultaneamente. Uma novela como Pantanal, que é um sucesso de audiência, chegando a 50 milhões de pessoas, em média, por dia, não conseguiria ser distribuída alcançando esse número de pessoas pela internet ao mesmo tempo. A internet é sempre uma relação de um para um. O que a TV 3.0 traz é a manutenção da característica fundamental da radiodifusão, que é chegar a 100 milhões, 200 milhões de pessoas e, simultaneamente, ter interlocução individualizada com cada um desses espectadores.
Hoje, o que diferencia a transmissão da TV aberta e a do streaming?
A TV aberta tem como característica tecnológica uma transmissão unidirecional. Então, aquela torre que tem aí no Morro Santa Tereza transmite o sinal da RBS TV para toda a Região Metropolitana. É o mesmo sinal. Todo e qualquer televisor que tiver conectado a uma antena para captar esse sinal vai recebê-lo. A internet não tem esse modelo de distribuição broadcast, que é o mesmo sinal sendo entregue como um todo. É outro modelo. Como se eu tivesse uma única antena conectada apenas com você. Hoje, eu só consigo entregar Pantanal ao vivo a 5 milhões de pessoas, porque são 5 milhões de indivíduos que podem acessar o mesmo conteúdo. A internet não comporta mais do que isso em suas fundações atuais.
Algum dia esse sinal unidirecional vai ser totalmente substituído pela internet?
O que provavelmente acontecerá é o seguinte: as tecnologias que hoje nós utilizamos na internet, o famoso protocolo IP, vêm para a radiodifusão. Então, a radiodifusão aberta passa a adotar os mesmos protocolos da internet no conceito da unidirecionalidade, a distribuição de um para 100 milhões. A internet continuará evoluindo, e essa capacidade que temos hoje, limitada a 5 milhões de conexões simultâneas, passará para 10, para 15, para 50, até chegar a 100 milhões. Mas isso não vai acontecer em um horizonte de tempo curto. E os modelos de negócio da internet são focados na personalização, nas conexões individuais. Não há muitos investimentos para que a internet se comporte como a radiodifusão. Até porque não precisa. A radiodifusão existe e funciona bem. Então, integrando a TV 3.0, com todos os dispositivos e todas as telas que possui, o sinal recebido pelo ar, via radiodifusão, e a internet 5G, em uma única interface, teremos o melhor de dois mundos.
Quando a TV 3.0 será implementada no Brasil?
É difícil estabelecer uma data precisa. O que posso dizer é que estamos há dois anos trabalhando. Fizemos no ano passado o que chamamos de Request for Proposal (RFP), para que as empresas de tecnologia do mundo e centros de pesquisas apresentem as suas soluções para o futuro da TV aberta no Brasil. Esse trabalho vem sendo desenvolvido com patrocínio do Ministério das Comunicações para todas as emissoras envolvidas, com grupos de estudos, testes, avaliações das tecnologias. A gente espera ter a definição sobre esse conjunto de tecnologias a serem adotadas entre 2022 e 2023, para termos as primeiras experiências de transmissão em 2024 e 2025. Esse é o horizonte de tempo com o qual a gente trabalha, mas a verdade é que isso depende ainda de muitas questões, até porque o estabelecimento de uma TV digital é uma prerrogativa do Ministério das Comunicações e temos eleições, talvez troca de governo, um conjunto de variáveis que podem interferir na discussão.
Como convencer o grande público de que a nova tecnologia é importante a ponto de trocar de televisor?
É o processo que a gente passou da TV analógica para a digital. Foram feitas diversas campanhas de levar ao público o benefício dessa transição tecnológica. Existe, naturalmente, um processo de adoção que começa pelos centros mais desenvolvidos, as grandes capitais, com pessoas de maior renda, mas isso vai naturalmente sendo adotado pelo restante da população ao longo dos anos, pelos benefícios inequívocos da nova tecnologia. Não será necessário que as pessoas tenham de trocar imediatamente o seu televisor. Mas chegará o momento em que o televisor terá algum problema e ela terá de trocar. Daí, já troca por um compatível com a nova tecnologia.
A TV aberta, a radiofusão, é o meio que tem e terá, em muitos anos, a prerrogativa de levar o mesmo conteúdo para milhões de pessoas. ‘Pantanal’, que chega a uma audiência de 50 milhões de pessoas ao mesmo tempo, não alcançaria esse número de pessoas pela internet.
O avanço tecnológico dá a possibilidade de se ter produções de alta qualidade, como Pantanal, filmada em 4K. Ao mesmo tempo em que o produto ganha mais recursos, ele também encarece? Custa mais fazer uma novela hoje do que custava há 30 anos?
A Globo tem o reconhecimento da indústria global de mídia por investir na produção a partir do estado da arte da tecnologia. Pantanal, por exemplo, teve o primeiro capítulo inteiramente em 8K. Infelizmente, a TV aberta hoje não suporta esta qualidade de imagem, mas a TV 3.0 suportará. Isso é parte da nossa estratégia. A Globo é uma produtora de conteúdo premium, e o brasileiros esperam da gente se surpreender sempre com o primor artístico e técnico. Portanto, esses custos fazem parte da nossa estratégia. Sim, produzir nessa qualidade custa mais caro, mas faz parte do nosso compromisso com o público brasileiro oferecer sempre a melhor qualidade. Ninguém precisa sair do Brasil para ter uma TV de primeiro mundo.
A Globo tem investido muito em conteúdo ao vivo. E os repórteres, hoje, fazem conexões de lugares remotos. Como a tecnologia ajudou nesse processo?
A programação ao vivo é uma tendência, e a Globo tem o objetivo de conectar as comunidades. E é por isso que elas têm esse aspecto localizado. Você tem, no Rio Grande do Sul, nove, 10 emissoras da RBS TV para garantir que a gente vai estar sempre muito próximo da realidade do público que assiste. Não é à toa que temos 120 emissoras no Brasil inteiro e milhares de retransmissoras para criar essa proximidade. E o ao vivo é fundamental para garantir que os brasileiros estarão sempre entendendo o que está acontecendo no país o tempo inteiro. A tecnologia ajudou imensamente para possibilitar isso. Principalmente na redução de custos, porque, cada vez mais, nós temos sido capazes de utilizar a rede de telecomunicações móvel para transmissões de imagens ao vivo. A gente tem hoje repórteres entrando do mundo inteiro utilizando câmeras que estão conectadas com a rede móvel de telefonia celular, utilizando o que a gente chama de Multi-SIM Card. É uma câmera com múltiplas conexões, que aumenta a capacidade de transmissão e que tem qualidade de imagem perfeita, ao vivo. É uma tecnologia que veio para ficar e vem, cada vez mais, evoluindo. A gente está muito animado com o 5G, porque vai permitir que estejamos ainda mais conectados com a comunidade.
Essa grande aposta em conteúdo ao vivo, na era do streaming, em que as pessoas assistem ao que querem, na hora em que querem, é o que garantirá, no futuro, que a TV aberta siga sendo necessária?
As plataformas de streaming são globais. YouTube, Netflix, HBO Max. No nosso caso, temos, no Globoplay, o compromisso com a brasilidade, que é a produção de conteúdo em língua portuguesa, contando histórias brasileiras, e a TV aberta tem essa hiperlocalidade. Então, Caxias do Sul tem a sua própria RBS TV, Santa Cruz do Sul, idem. A proximidade da Globo com as comunidades é uma vantagem, é um valor que a TV aberta tem e que é para a Globo algo fundamental na nossa história de sucesso como organização. Essa hiperlocalidade dificilmente será atendida pelas plataformas de streaming.
As plataformas de streaming são globais. A proximidade da Globo com as comunidades é uma vantagem, é um valor que a TV aberta tem. Essa hiperlocalidade dificilmente será atendida pelas plataformas de streaming.
Com a chegada da TV 3.0 e a grande variedade de serviços de streaming disponíveis, a tendência é que TV a cabo, que vem tendo quedas anuais de assinantes, termine?
Esse fenômeno da perda de base da TV paga é mundial, mas eu não acho que ela será dizimada. Ela está em um processo de transformação, que passa naturalmente pela tecnologia. As empresas de TV paga têm feito, na oferta de seu portfólio, canais integrados, agregados digitalmente. E todas elas estão caminhando nesse sentido. E os brasileiros, principalmente das classes mais abastadas, que têm a TV paga há muitos anos, terão condições de continuar pagando. É uma questão de comodidade. Talvez quem nunca teve uma TV paga e descobriu o streaming não se torne assinante, mas muitos assinantes antigos devem seguir com a TV paga.
Como foi o processo de adaptação demandado pelo início pandemia, em 2020? Foi o maior desafio de sua carreira nestes 40 anos de Globo?
Em meio a essa imensa tragédia que foi a pandemia do coronavírus, nós, na Globo, hoje, estamos bastante orgulhosos de termos cumprido o nosso papel social dentro deste país. Nós colocamos, de maneira ininterrupta, reforçando inclusive, o trabalho de cobertura jornalística, garantindo que não faltaria informação transparente e real para a população. Tomamos todas as medidas para que a empresa pudesse se preservar e preservar os seus talentos, levando cerca de 10 mil colaboradores para trabalhar de maneira remota, entrando ao vivo, participando da programação. E nas afiliadas foi exatamente o mesmo comportamento, com as equipes de jornalismo e tecnologia necessárias para garantir que a população estivesse bem informada, com acesso à continuidade da programação de alta qualidade. Nós tivemos que, naturalmente, rever nossa estratégia de produção de conteúdo, mas saímos orgulhos de todo o trabalho jornalístico feito em um país tão polarizado como o nosso anda ultimamente. Mas confesso que foi, destes meus 40 anos de casa, a mais complexa experiência, de reformatar a maneira de operar a empresa, realizada praticamente em um final de semana, envolvendo todos os nossos 15 mil colaboradores e a imensa audiência, que não poderia deixar de estar assistida.