A guerra cheia de baixarias entre Carminha e Nina. O romance entre Jade e Lucas. Camila raspando o cabelo. O beijo entre Félix e Niko. O misterioso assassinato de Odete Roitman. Cadeirudo surgindo nas sombras. Nazaré Tedesco empurrando as suas vítimas escada abaixo. Os ataques de irritação da Viúva Porcina. Dona Redonda explodindo. Gabriela pegando a pipa no telhado. As encaradas assustadoras do Boi Bandido. As esculturas de areia de Tonho da Lua. Juma virando onça.
A lista de momentos inesquecíveis na teledramaturgia brasileira é extensa. E o mais curioso? Nem é preciso citar os nomes das novelas para que o espectador saiba exatamente de qual folhetim era cada uma das situações citadas acima. É o poder que o formato tem na vida dos brasileiros. E esse casamento entre público e personagens está comemorando as bodas de vinho, ou seja, 70 anos.
Foi às 20h deste mesmo 21 de dezembro, mas em 1951, que foi ao ar, na TV Tupi, o capítulo de estreia da primeira telenovela brasileira: Sua Vida Me Pertence. A produção, que ainda era transmitida ao vivo, duas vezes por semana, às terças e quintas-feiras, contou com um total de 15 episódios, que se passavam em apenas dois cenários, um quarto e um jardim de uma praça. Os protagonistas eram Walter Forster e Vida Alves, também responsáveis pelo primeiro beijo da televisão brasileira. E um detalhe curioso: Lima Duarte, que segue firme e forte na frente das câmeras, também estava no elenco.
Sete décadas se passaram desde o lançamento da ainda meio acanhada versão televisiva das populares radionovelas. E, desde lá, o audiovisual foi ganhando cada vez mais espaço nas casas — afinal, era preciso comprar uma, até então, caríssima televisão para assistir — e no coração da população. Em 1963, a relação se intensificou, tanto que surgiu a primeira telenovela diária: 2-5499 Ocupado, exibida na TV Excelsior. A partir daí, os folhetins passaram a ganhar ainda mais investimento e passaram a fazer parte do dia a dia dos brasileiros.
Nesta terça-feira (21), a TV Globo comemorará as sete décadas das novelas com o especial 70 anos Esta Noite. O programa vai relembrar momentos inesquecíveis, vilanias e finais felizes que marcaram a história do formato na televisão brasileira. Lima Duarte, Tony Ramos, Gloria Pires, Susana Vieira, Patrícia Pillar, Lilia Cabral, Antonio Fagundes, Taís Araújo, Renata Sorrah, Fernanda Montenegro, Adriana Esteves, Claudia Raia, Carolina Dieckmann, Giovanna Antonelli, Nivea Maria, entre outros, marcarão presença no programa. A atração tem direção de Henrique Sauer, roteiro de Bia Braune e Celso Taddei com supervisão de George Moura. A produção é de Isabela Bellenzani e a direção de gênero de José Luiz Villamarim. A atração será exibida logo após Um Lugar ao Sol e, na quarta-feira (22), no Viva, às 18h30min.
De acordo com Maria Immacolata Vassallo de Lopes, professora, coordenadora do Centro de Estudos de Telenovela (CETVN/ECA-USP) e criadora do Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva (OBITEL), a novela é o principal produto audiovisual do país, reforçando que a centralidade do formato, até mesmo por parte de quem não consome este tipo de conteúdo, valida esta afirmação. Por isso, ela acredita que este aniversário merece ser intensamente comemorado.
— As novelas fazem parte do nosso cotidiano. Elas estão integradas com a maneira como vivemos — ressalta.
Mas, para chegar na importância que essas produções televisivas têm na vida dos brasileiros, segundo a pesquisadora, a forma como ela se comunica com os seus espectadores foi essencial. A professora explica que este fenômeno se dá pela narrativa simples que os folhetins oferecem ao público, fazendo com que o público se enxergue na tela, independentemente de onde a história se passe: seja pelas ruas do Leblon ou na periferia. As situações pelas quais os personagens passam são universais. E este movimento, para Maria Immacolata, intensificou-se a partir de 1968, com Beto Rockfeller, que apresentou realismo ao entregar uma narrativa sobre a nação.
— A novela tem esse poder de hipnotizar, de falar com as pessoas — pontua, destacando a importância da criatividade de autores como Dias Gomes, responsável por títulos como Roque Santeiro, Saramandaia e Irmãos Coragem, neste processo.
Fenômeno
Entre os momentos e personagens que marcaram a teledramaturgia brasileira nestes 70 anos descritas no começo do texto, faltou citar um ícone que até hoje tem uma popularidade sobrenatural: Alexandre, o icônico "encosto" de A Viagem, que atazanava os vivos em busca de vingança.
Em entrevista a GZH, o intérprete do personagem, Guilherme Fontes, que também brilhou em vários outros folhetins, como Mulheres de Areia e Bebê a Bordo, destaca que é um espectador assíduo de novelas desde criança e se sente honrado por ter conseguido fazer parte da história dos folhetins.
— O Alexandre é um personagem transmídia e fico tocado por ele continuar popular. É incrível como a história da Ivani Ribeiro segue atual e próxima do coração das pessoas. Para um ator, é o máximo. Quando você consegue na vida alguns clássicos como este, não tem preço — conta.
E Fontes não tem o menor problema de ter a sua vida atrelada ao personagem. Que, por sinal, gostaria de reviver em algum momento:
— Brinco que este é um personagem que, hoje em dia, na era digital, pode ser retomado de qualquer forma, de qualquer maneira, em qualquer mídia. E isso é fascinante. Eu gosto muito dessa ideia. Como ator, sou apenas um instrumento. E, com o digital, até as minhas rugas poderiam ser resolvidas. Acho muito divertido isso e voltaria, claro. O Alexandre é um super-herói das trevas.
Futuro
Envolvido com as novelas desde os anos 1980, Fontes acredita que o formato é "fascinante" justamente por conseguir se reinventar. E ele, que também é cineasta — foi responsável por dirigir Chatô - O Rei do Brasil —, não descarta, no futuro, dirigir um folhetim e reforça que o modelo deverá seguir com força, principalmente com o interesse dos streamings em apostar neste tipo de produção.
— A telenovela formou e continua formando comportamento, ao mesmo tempo em que informa, motiva e expõe as questões que são de todos, ricos e pobres. E o fenômeno da novela é esse. Ela faz parte do coração e da alma da cultura brasileira — destaca, enfatizando que seria interessante experimentar fazer, novamente, este tipo de produção ao vivo, assim como em seus primórdios.
Maria Immacolata, por sua vez, também aponta que o futuro do formato já está se mostrando para o público. Ela usa como exemplo duas produções oriundas dos estúdios Globo: a novela Verdades Secretas 2, feita para o streaming, e a minissérie Passaporte para Liberdade, gravada em inglês e dublada para o público brasileiro, que já é acostumado com este tipo de tradução — a produção é direcionada para o mercado internacional.
— Quem acha que a novela está morrendo, não conhece esse produto que é originário, que é cultural e que tem essa força do próprio país — enfatiza Maria Immacolata.