Seria mais um dia normal na vila São Judas Tadeu, no bairro Partenon, na Capital, não fosse uma movimentação intensa na Rua Lício Cavalheiro. Na última quinta-feira, carros, atores e uma grande grua de iluminação tomavam o local para mais um dia de gravações da série Centro Liberdade, com produção da Prana Filmes. No centro da iluminação técnica, um casal caminhava tenso pelo local, pensando no crime que norteia a trama.
Além do drama policial, o seriado com roteiro e direção de Bruno Carvalho, Lívia Ruas e Cleverton Borges fala sobre a realidade periférica de Porto Alegre. Em meio à trama de Gabriela (Kaya Rodrigues), uma assistente social que começa a trabalhar na vila ficcional, o espectador terá a chance de acompanhar a rotina dos moradores através de suas subtramas, como a trajetória de uma slamer (artista que participa de batalhas de poesia sobre contextos sociais).
— Contar as narrativas de pessoas que não são vistas, trazendo isso para dentro do audiovisual, é um impacto gigantesco. A influência do tráfico e o fato de famílias de vilas serem mais matriarcais, como aconteceu comigo, estão na série de forma muito potente – acredita Borges, nascido e criado na vila Cruzeiro.
Quando a reportagem de GZH esteve no local, testemunhou a preocupação em trazer um fiel retrato da vida nas comunidades. Além de parte do elenco ter conexão com trabalhos sociais, nos bastidores a representatividade falava alto: a equipe de figurinistas é formada por negros e alguns dos técnicos, como Borges, cresceram em vilas.
Por isso, o ator Rafael Sieg viu em Centro Liberdade a chance de explorar o lado social, algo que sempre quis em sua carreira. Seu personagem, o líder comunitário Ricardo, acaba representando um burocrata que trabalha a favor do sistema econômico: uma imobiliária pretende despejar parte da vila para construir uma grande avenida — e ele irá ajudar a retirar os moradores dali.
— É muito bom estar em um projeto que tem esse olhar da comunidade como um suporte da economia. Claro que meu personagem é a parte “torta” desse processo, mas me interessa falar dos seres humanos que fazem parte disso — destaca Sieg, que gravou recentemente a segunda temporada de Chuteira Preta, com direção de Paulo Nascimento.
No caso de Kaya Rodrigues, que vive a protagonista Gabriela, a questão social é ainda mais forte. Em seu último trabalho, na série O Complexo, ela interpretou uma líder comunitária sisuda e com forte ideal de vida. Em Centro Liberdade, sua personagem também se preocupa em transformar a realidade da vila liderando a luta contra o negócio que tenta acabar com a região. Ao mesmo tempo, vai investigar a morte do líder anterior da comunidade, enquanto enfrenta dramas familiares, como o retorno do pai ex-presidiário que abusou dela na infância.
— Sempre fui muito inquieta e curiosa com a transformação da sociedade, então acho que não é por acaso o que está acontecendo (risos). É muito bom ter uma segunda chance de falar sobre o lugar de onde vim — pontua Kaya, que já deu aulas de teatro em projetos sociais e também integra a equipe do Bloco da Laje, um dos mais tradicionais agrupamentos carnavalescos de Porto Alegre.
Referências
Com 10 episódios, Centro Liberdade será exibida em um canal público de TV ainda a ser definido, a partir de 2023, por ter sido contemplado pelo edital do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA)/BRDE de TVs públicas em 2018.
Para a diretora, o seriado retrata “a verdade” de Cidade de Deus, de Fernando Meireles, em uma visão voltada ao solo gaúcho. Com poucas referências de histórias que se passam em vilas locais, a proposta foi filmar em três comunidades da Capital — que são aglutinadas em uma única região na ficção.
— Eles falam “tu”, bem gaúcho, e até a construção de figurino foi feita junto das comunidades. A gente quis fazer algo de dentro para fora, não tinha por que fazer algo montado se temos tudo diante dos nossos olhos — explica Livia.
Cineastas como Spike Lee e Danny Boyle também acabaram sendo usados como referências.
— O Spike Lee brinca com o racismo e fala isso de forma veemente, escancara e explora da melhor maneira possível na cara do espectador. A gente quis se colocar diante deles e trazer algo diferente, e tem dado muito certo — garante Borges.