Pelo menos no Brasil, todo mundo ama o Chris. Mais de 15 anos depois da estreia da sitcom do comediante Chris Rock, em setembro de 2005, a produção segue um sucesso no país, como mostraram as comemorações na última semana, quando o título foi anunciado no catálogo da Amazon Prime Video.
É um amor de longa data, que já foi reconhecido pelo próprio elenco de Todo Mundo Odeia o Chris. “Julius ama TODOS vocês!”, escreveu em português o ator Terry Crews, em suas redes sociais, no último aniversário da série. Já Tichina Arnold, que interpreta Rochelle no seriado, publicou que ama o país e recordou o carinho dos fãs durante sua visita em 2013: “Assim que a covid passar, vou voltar ao Brasil”, garantiu.
Qual o segredo para tanta adoração? Para começar, a sitcom é um dos poucos enlatados norte-americanos exportados para a televisão brasileira que retrata uma família verdadeiramente pobre. Como Rochelle repete com orgulho, seu marido tem dois empregos. Julius, enquanto isso, não tem nenhum plano de gastar um centavo a mais que o necessário de seus dois salários. Seus três filhos, Chris, Drew e Tonya, estudam em escolas públicas e o mais velho é constantemente incentivado a encontrar seu próprio emprego.
O cotidiano de todos eles envolve viagens de ônibus, a violência do Brooklyn na Nova York dos anos 1980 e uma constante preocupação com dinheiro, seja para comprar um presente especial, uma peça de roupa na moda ou um apetrecho maneiro. Uma realidade bem conhecida por grande parte dos brasileiros e muito mais próxima do que a vista em Friends ou mesmo Um Maluco no Pedaço.
— Eu acho que as pessoas amam tanto o seriado mais pelo fato da identificação com os personagens. Porque a série mostra um humor que tem tudo a ver com nós, brasileiros — declara Reinan Santos da Silva, administrador da página de humor “Chris Sincero”.
Parte da audiência assídua da série, Reinan conta que acompanha a sitcom há anos. No Instagram, em que soma mais de 50 mil seguidores, ele compartilha cenas da produção, notícias sobre o elenco e muitos memes, que refletem essa sincronia entre Todo Mundo Odeia o Chris e a realidade do Brasil.
Representatividade
A identificação pode explicar por que Todo Mundo Odeia o Chris faz mais sucesso do que outras “black sitcoms” — como são conhecidas as séries de comédia sobre famílias negras, nos Estados Unidos. Produções quase inexistentes antes dos anos 1990 (apenas 6% das sitcoms retrataram famílias negras nos EUA entre 1947 e 1990), desde então essas séries tendem a apresentar um ideal de família suburbana de classe média mais próxima à experiência dos brancos no país do que da comunidade negra.
É uma tradição que teve início com The Cosby Show, no ar entre 1984 e 1992, que ditou o ritmo para tudo que veio em seguida. Exportada para mais de 70 países, a série foi um sucesso de público ao mostrar uma visão mais conciliatória da experiência dos negros no país. Mesmo Um Maluco no Pedaço (1990-1996), que tratava questões como racismo e discriminação, era ambientada no próspero lar de Philip Banks, um juiz negro em Bel-Air.
Assim, a jornada de Chris e sua família é um ponto fora da curva. Mas não é possível descolar o fenômeno da série de questões raciais, ainda mais em um país em que a representação de negros na televisão é escassa, como no caso brasileiro, mesmo com 55% da população se autodeclarando negra (segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do IBGE).
Ao comparar dados do YouTube — disponíveis a partir de 2008 —, por exemplo, é possível ver que conteúdos de Todo Mundo Odeia o Chris e Eu, a Patroa e As Crianças são muito mais procurados por brasileiros na plataforma do que outras séries de sucesso mundo afora, como Um Maluco no Pedaço e Friends. The Office quase não aparece no gráfico.
Os dados mostram quase uma inversão completa quando parte-se para o público dos Estados Unidos. Friends e Um Maluco no Pedaço receberam muito mais do que o dobro da atenção de Todo Mundo Odeia o Chris no país, considerando o mesmo período do gráfico acima.
Impacto
E todo esse sucesso traz frutos positivos para todo o Brasil. “Um mocinho negro como protagonista na televisão surte mais efeito para o público do que 50 ensaios e romances, considerando o poder de alcance da mídia televisiva”, escreve a pesquisadora Daniele Cristina Benicio dos Santos em sua dissertação sobre a série.
Mestre em Letras pela Universidade Estadual de Maringá, ela analisou o discurso de Todo Mundo Odeia o Chris e concluiu que a produção é capaz de descontruir o racismo para sua audiência.
— Chris, como protagonista, tem seu lugar de fala onde aponta as diferenças no discurso do branco que se coloca como norma — ressalta Daniele. — O programa desconstrói o mote de que o preto é diferente e por isso é discriminado, insultado e barbarizado. Por meio de sutilezas presentes nas cenas, aponta que é a discriminação que torna Chris diferente, depreciado.
Daniele, aliás, não vê as audiências se cansando da produção tão cedo. Atualmente disponível no Prime Video e Globoplay, além de suas transmissões no canal por assinatura Comedy Central, Todo Mundo o Chris deve ter uma vida longa pela frente, segundo a pesquisadora:
— É provável que a série continue sendo um sucesso retransmitido em vários canais e países por tratar um assunto que é sempre atual: violência, injustiça e pobreza. A discriminação é atualizada diariamente, e Chris mostra como não ser definido pelo olhar do outro que o trata como objeto.