
Conhecido pela delicadeza e sofisticação de suas letras e melodias, muitas das quais se tornaram peças emblemáticas do cancioneiro nacional ao longo das últimas seis décadas, Paulinho da Viola se define como um compositor intuitivo. Algumas vezes se viu cantarolando algo novo ao acordar ou enquanto dirigia. E não esconde que já passou muito trabalho para emprestar versos a canções enviadas por colegas.
Assumidamente influenciado pelo choro de Pixinguinha e Jacob do Bandolim, além de decanos do samba com quem conviveu, como Cartola e Zé Keti, chegou a trabalhar como bancário e em um escritório de contabilidade antes de consolidar a carreira de músico, no início dos anos 1970.
Não surpreende que tenha sido atraído à arte: filho do violonista Benedicto Cesar Ramos de Faria, cresceu em meio a reuniões musicais que ocorriam quase todas as semanas em sua casa. Hoje, alguns de seus filhos também são ligados à música.
Aos 82 anos, segue ativo e não pensa em parar. Neste sábado (15), às 21h, retorna a Porto Alegre para apresentar o show Quando o Samba Chama no Auditório Araújo Vianna (Av. Osvaldo Aranha, 685). Os ingressos estão à venda pela Sympla.
Na entrevista a seguir, relembrou momentos da trajetória, falou sobre o processo criativo e analisou as transformações em outra tradição que é parte fundamental de sua vida: o Carnaval. Também comentou a relação com dois gaúchos que foram importantes em sua formação: Lupicínio Rodrigues ("Se você for falar em samba-canção, não tem como se esquecer dele") e o maestro Radamés Gnattali ("Um gênio").

Leia e entrevista
Passado mais de um século, o senhor acha que o samba consegue se renovar? Há coisas novas surgindo?
Acho difícil falar em renovação. As gerações sempre vão sofrendo influência do seu universo naquele momento. É difícil falar que uma coisa é absolutamente nova, embora isso possa acontecer. Em 2014, fui tocar com uma orquestra na Holanda e, para minha surpresa, descobri que havia uma escola de choro lá. Quando fui ao Japão, em 1986, conheci grupos que faziam samba. Esses grupos vão renovar o samba? Pode até ser. Com certeza tem muita coisa interessante acontecendo.
Em Argumento, de 1975, o senhor pedia cautela em relação a experimentações na forma de fazer samba. Isso ainda lhe incomoda?
Na época, havia na Portela um certo assédio porque outras escolas estavam apresentando sambas diferentes daquilo que se fazia — aqueles sambas muito grandes, mais lentos e cadenciados. Começaram a aparecer sambas mais vibrantes, de andamento mais rápido. Quando fiz esse samba, foi por isso. Tanto que logo depois houve uma cisão na Portela e algumas pessoas se afastaram. Eu mesmo fiquei anos sem sair na escola.
Antigamente, o samba era uma coisa tão importante dentro de uma escola que alguns entraram para a história. Aí começaram a aparecer efeitos especiais, tecnologia, as alegorias passaram a ter uma importância enorme
O senhor tem uma história longa na Sapucaí. O Carnaval mudou muito?
Peguei uma época em que as escolas podiam desfilar pelo tempo que quisessem. Depois, passou a ter um tempo determinado. Isso mudou o andamento porque, se você tem que passar dentro de um tempo, naturalmente você acelera o ritmo. Antigamente, o samba era uma coisa tão importante dentro de uma escola que alguns entraram para a história. Aí começaram a aparecer efeitos especiais, tecnologia, as alegorias passaram a ter uma importância enorme.
Algumas vezes, há críticas quanto a um suposto excesso de luxo e pirotecnia nos desfiles. O senhor sente isso?
Houve uma época em que eu sentia. Não sei se é porque estávamos muito ligados a uma ideia mais tradicional, dos grandes sambas que o povo todo sabia. Mas ainda na década de 1960, um amigo me disse que as escolas precisam mudar, porque senão viraria uma coisa de folclore.
E isso vale para o Carnaval de rua também, que há muito deixou de ser aquele tradicional, das marchinhas.
É, isso você nem vê mais, só alguns blocos mantêm. Mas o Carnaval é uma coisa impressionante. Há alguns anos, o Carnaval em São Paulo, por exemplo, era restrito às escolas de samba e a alguns clubes, quase não tinha Carnaval de rua. E olha hoje como é. O Carnaval está em todos os cantos.
E talvez essa abertura ajude a manter a tradição viva, não?
É claro. E tinha que desabar nisso mesmo, não podia ficar só na marchinha.
O senhor é filho de músico e hoje alguns dos seus filhos também são ligados à música. Isso tudo se deu de forma natural?
Sim. A minha filha Beatriz, com três ou quatro anos, já sambava. Sem ninguém ter ensinado. Outra filha que veio depois me dizia: "Pai, eu não canto nem no banheiro" (risos). Aí começou a frequentar escola de samba e hoje dança pra caramba. É assim, entendeu? Eu acompanhava muito meu pai em gravações, ensaios. Desde garoto, ouvia Jacob (do Bandolim), Pixinguinha. Isso marca muito a vida da pessoa.

Há um samba seu, 14 Anos, no qual o senhor conta que queria ser sambista, mas seu pai tentava demovê-lo da ideia. Isso aconteceu mesmo?
Meu pai nunca fez pressão para que eu fizesse isso ou aquilo. Como todo pai, dizia que eu tinha que estudar. Quando percebeu que eu era muito ligado no que ele fazia, arrumou um professor para me dar aulas de violão. Mas na verdade, esse samba não foi feito para falar só da minha história. O Jacob gravou dezenas de discos, tocou em tudo o quanto é canto, mas dizia: "Sou escrivão de Justiça". Muitos músicos tinham outra profissão para poder sobreviver.
E o senhor chegou a trabalhar como bancário, não?
Claro. Trabalhei em outros lugares também. Eu não tinha muita certeza de que ia continuar como músico. No início, tocava sozinho. Aí comecei a mandar músicas para os festivais. Só senti necessidade de formar grupo quando tive o primeiro sucesso, Foi um Rio que Passou em Minha Vida. Essa música estourou no Carnaval de 1970 e eu passei a ser muito solicitado.
O senhor é muito reconhecido como compositor e letrista. Como surge uma canção nova?
Muitas vezes me vi em situações de acordar com uma melodia na cabeça. Ou, então, estava dirigindo e de repente me via cantarolando uma coisa. Uma ocasião, recebi uma melodia do Elton (Medeiros) e não conseguia fazer a letra. Ele me ligava e dizia: "Rapaz, o disco tá acabando, cadê a música?" (risos). Aí eu sentei perto da cama, peguei um gravador de fita, e sabe o que aconteceu? De repente, comecei a fazer uma outra letra, com outra melodia que não tinha nada a ver com aquilo. Aí, quando voltei para a música do Elton, consegui fazer a letra. Sou intuitivo, não tenho muito método.
Tenho certeza de que minha música foi muito influenciada pelo choro. Eu ouvia muito Jacob do Bandolim. Pixinguinha, até hoje, de vez em quando eu preciso ouvir.
Apesar de intuitivo, consegue reconhecer quais foram suas principais influências?
Tenho certeza de que minha música foi muito influenciada pelo choro. Eu ouvia muito Jacob do Bandolim. Pixinguinha, até hoje, de vez em quando eu preciso ouvir. Mas Cartola, com quem eu convivi, Nelson Cavaquinho, o próprio Elton, Zé Keti, acredito que eu tenha sofrido influência dessa turma também.
O senhor nunca escondeu a admiração pelo Lupicínio Rodrigues. Uma música dele, Nervos de Aço, dá nome a um disco seu. Como surgiu essa relação?
Meu pai reunia muito os amigos. E eles cantavam músicas de grandes artistas, como Silvio Caldas, Francisco Alves, Orlando Silva, Ciro Monteiro, Roberto Silva. E, na minha infância, Lupicínio era um sucesso no Brasil inteiro. Se você for falar em samba-canção, não pode esquecer Lupicínio.

O senhor também fez uma música em homenagem a outro músico gaúcho, Radamés Gnattali.
Esse era um gênio. Até hoje tem músicos assumidamente influenciados por ele. Na década de 1970, quando houve uma volta da música de choro e vários clubes foram fundados no país, me ocorreu a ideia de fazer um choro. Quando concluí, achei que na terceira parte tinha ficado um pouco parecido com o jeitão do Radamés. Quando fui gravar um especial da Globo, decidi convidá-lo para tocar comigo esse choro, que chamei de Sarau para Radamés.
Em determinada época, era normal você fazer uma piada de cunho racista. Mas essas coisas perderam o sentido, então os artistas evitam. E não acho nada radical
Muitas canções antigas hoje são contestadas por conta de vieses machistas e racistas nas letras. É um revisionismo correto ou há exagero?
Em alguns casos, pode haver exagero. Em outros, não. Em determinada época, era normal você fazer uma piada de cunho racista. Mas essas coisas perderam o sentido, então os artistas evitam. E não acho nada radical, é algo muito importante.
Sei que o senhor também é um grande leitor. O que tem lido ultimamente?
O último livro que li foi de uma escritora negra chamada Ruth Guimarães, chamado Água Funda. Esse livro saiu em 1946, mesmo ano em que saiu o Sagarana (de Guimarães Rosa), e foi relançado há pouco tempo. É uma leitura muito agradável.
O senhor está com 82 anos e segue muito ativo. Parar está no seu horizonte?
Não penso nisso. Todo mundo tem seu tempo e, quando chega o tempo de parar, tem que parar. Mas é algo que você sente. Naturalmente, você não tem a mesma pegada de quando tinha 20, 30 ou 40 anos. Para mim, a coisa mais complicada é viajar de avião (risos). Tanto que peço sempre para viajar não um dia antes, mas dois, para poder descansar. São coisas que, provavelmente, um jovem enfrenta tranquilamente.