Quem caminha pela Avenida Presidente Vargas, no centro de São Borja, município de 60 mil habitantes da Fronteira Oeste, não demora para esbarrar com João Goulart. O ex-presidente está lá, na calçada, de pé, vestindo bombachas e com um mate na mão. Ele olha para a frente, com uma expressão feliz, como se estivesse observando alguém de longe.
Ao seguir na direção do olhar de Jango por três minutos de caminhada, a 250 metros de distância, encontra-se sentado o homem que dá nome para a via, Getúlio Vargas. Também pilchado e segurando o seu chimarrão, ele está receptivo para ter companhia no banco em que ocupa.
O encontro com essas figuras históricas é possível por conta de duas estátuas em tamanho real, esculpidas pelo são-borjense Rossini Rodrigues e que foram colocadas na avenida em 2021. Recriados em concreto, eles estão ali para convidar quem passa a se aprofundar nas jornadas de dois dos grandes nomes da História do Brasil no último século – ambas as obras estão em frente às antigas casas dos políticos e, dentro delas, há museus dedicados às duas figuras.
Leia mais sobre a história dos museus dedicados aos ex-presidentes
No século passado, Getúlio Vargas (1882-1954) foi mentor de João Goulart (1919-1976), que nutria grande admiração pelo mais velho. E isso desde cedo. Em 1934, em visita de Vargas a São Borja, Vicente Goulart, pai de Jango, ofereceu um churrasco ao então presidente. O filho do anfitrião, que tinha 17 anos, pediu a palavra e improvisou um discurso enaltecendo o “líder inconteste da Revolução de 30”. Vargas, surpreso com a desenvoltura do jovem, pergunta:
— Tu vais ser político, Jango? Pois devias. Tu falas bem.
Esse rápido episódio exemplifica a dinâmica entre eles, mostrando a influência de Vargas e, também, o poder de oratória de Jango. Suas histórias, exaltadas nos dois museus, se entrelaçam, com um fazendo participação especial no recinto do outro – para além da amizade, Jango chegou a ser ministro do Trabalho de Vargas. Com exaltação às vidas e aos feitos, os espaços, porém, entregam uma fascinação em comum para quem os visita: as chamadas “salas da morte”.
A casa de Getúlio
Construída entre 1910, a casa centenária que hoje abriga o Museu Getúlio Vargas foi presente do pai do ex-presidente, Manuel Vargas, para o filho, que havia casado com Darcy Sarmanho no ano seguinte. Na residência, nasceram os cinco herdeiros do casal. Foi ali que começou a trajetória política do líder populista, que já era deputado estadual quando se mudou para o local.
Inclusive, contam os mais antigos são-borjenses, que o político ainda iniciante Getúlio se dirigia até uma das janelas de frente do imóvel e fazia inflamados discursos para a população, que se reunia em frente à casa para ouvir o futuro presidente – na época, a via onde se encontra o imóvel se chamava 7 de Setembro, nome alterado para Presidente Vargas em 1954, ano de sua morte. Em 1923, depois de 12 anos vivendo no endereço, a família deixou São Borja e rumou para o Rio de Janeiro. O motivo? A eleição de Getúlio como deputado federal.
A casa, de um andar e nove cômodos, seguiu pertencendo à família e foi transformada em museu em 1982, em um projeto idealizado por Lutero Vargas, o filho mais velho de Getúlio, que desejava um espaço para relembrar a história do pai em sua terra natal. Ali, itens pessoais do ex-presidente foram disponibilizados para visitação da população, e, com o avançar dos anos, doações foram se somando ao acervo. Em 1994, o Museu Getúlio Vargas foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae).
Atualmente, na frente da casa, Getúlio está em seu banco com o outro braço estendido. De acordo com Rossini Rodrigues, o escultor, a posição simboliza um convite para as pessoas se sentarem ao lado dele, em um gesto de carinho, quase como uma retribuição à celebre frase “voltei ao governo nos braços do povo”, de Vargas, ao falar de seu retorno à presidência:
— Coloquei o braço dele em cima do banco que é para as pessoas se sentirem abraçadas pelo Getúlio, porque ele é do povo, né?
A casa, que fica no número 1.772 da avenida que recebe o nome do ex-presidente, tem uma entrada lateral que já coloca o visitante dentro do escritório usado por Getúlio. Dali, ele advogava e, também, exercia o seu trabalho como deputado estadual. A escrivaninha e a cadeira, de madeira, são originais, bem como todos os outros itens que estão expostos no local – e eles vão desde fardas e espadas, passando por trajes e cartolas até acessórios pessoais, como relógios, isqueiros, porta-charutos e até um banco que o político utilizava para jogar golfe. Souvenirs da época das campanhas e documentos originais assinados por Getúlio também podem ser encontrados, ajudando a construir o grande mosaico da política nacional da época.
Nas paredes, painéis contam a trajetória do ex-presidente desde o nascimento, seus feitos como político e como pensava o homem que mais tempo governou o Brasil no período republicano – em suas duas passagens pelo poder (1930-1945 e 1951-1954), somou quase 19 anos à frente do cargo. Fotos, quadros e bustos adornam o espaço, traçando uma narrativa completa – e getulista, é claro – da personalidade que viveu ali.
Quem chega para conhecer esse pedaço da história pode sair bem-informado apenas lendo o que dizem as placas, mas a experiência é mais imersiva: existem monitoras que guiam o visitante por todo o percurso, apresentando a história de maneira detalhada e, principalmente, apaixonada. A guardiã mais inflamada é Clenir de Carvalho, pedagoga e que está envolvida com o museu há quatro anos, mas a admiração por Getúlio vem de muito antes – ela inclusive chama o ex-presidente de “Gegê”, mas logo explica que tirou o apelido do jingle da campanha de 1950 do político, que tinha um trecho que dizia: “Ai, Gegê! / Ai, Gegê! / Ai Gegê! / Que saudades que nós temos de você!”. E ela não se acanha em o cantar para quem quiser ouvir.
Clenir, getulista de carteirinha, recorda de vários visitantes que compartilham da mesma paixão que ela, reconhecendo o são-borjense como o mais importante político da história:
— Recebemos pessoas que dizem que era o sonho pisar onde o Getúlio pisou. Gente que vem de longe para estar aqui.
— Eu já vi pessoas se abraçarem nas portas e caírem no choro. Pessoas mais velhas demonstram uma grande emoção de visitarem o lugar onde viveu Getúlio – complementa Dalvanir Alves Lago, que trabalha como monitora no museu há 18 anos.
A dupla de monitoras diz com ênfase que, se fosse para deixar o Museu Getúlio Vargas e trabalhar em qualquer outro – inclusive o de Jango –, preferiria se aposentar e ir para casa. Para elas, a trajetória de “Gegê” é incomparável e, mesmo que São Borja tenha emplacado outro presidente pouco tempo depois, o mais velho segue sendo o grande nome da política nacional.
— A história de Getúlio é muito maior do que a história do Jango. Jango era um discípulo do Getúlio. Ele ouvia o pai conversando com o Getúlio, e é daí a formação política dele, o mesmo pensamento, as mesmas ideias políticas. Jango teve a sua importância, mas os feitos dele e o tempo como presidente não se comparam com o Getúlio — acrescenta Clenir, vestindo uma camiseta com a foto do ídolo.
A casa de Jango
Erguida em 1927, poucos anos depois e a poucos metros da casa onde viveu seu mentor, a pomposa residência para a época foi construída pelos pais de Jango, Vicente e Vicentina Goulart – esta última chamada de Tinoca, apelido que está escrito, em forma de canteiro de flores, no jardim da residência, como demonstração de amor do marido. O futuro presidente, nascido em 1919, foi morar ainda criança na casa, acompanhado de seus oito irmãos.
Ali, viveu parte de sua infância e juventude, enquanto se dividia entre estudos em Itaqui, Uruguaiana e Porto Alegre – quando terminou a faculdade de Direito, na UFRGS, retornou para São Borja e, entre as lidas com gado da família no Interior, também se hospedava na casa da cidade, onde hoje é o seu memorial. No regresso para a moradia, porém, instalou-se no espaço dos fundos do imóvel, onde eram as dependências dos empregados.
Passando por diversos cargos políticos, Jango foi eleito vice-presidente em 1960, assumindo a presidência no ano seguinte até ser destituído do poder pelo golpe que deu início à ditadura civil-militar, em 1964. Ali, ele partiu para o exílio no Uruguai e, depois, na Argentina, onde viria a morrer, em 1976. A casa onde viveu na infância e na juventude foi tombada pelo Iphae em 1994 e se tornou o museu que é hoje em 2009, após passar por restauro.
Parada ao lado do portão do museu, a estátua de Jango fica próxima à plaquinha que diz “nesta casa viveu João Goulart”. Ao subir os degraus da residência, no número 1.033 da Avenida Presidente Vargas, bem na esquina com a Rua Félix da Cunha, o visitante depara com outra figura que também está sempre pela frente do imóvel, mas se movimentando e falando com quem chega: é João Carlos de Moura, segurança do Memorial Casa.
Para ele, guardar o espaço que foi casa de Jango é uma grande responsabilidade – afinal, reflete o segurança, ali mora uma parte importante da História do Brasil. Mas, principalmente, João Carlos sente que está devolvendo o carinho que foi dado para a sua família. Quando criança, recorda, a sua mãe, Maria da Rosa, passando por necessidades e vivendo em uma residência com telhado de capim santa fé, colocou a melhor roupa nas crianças e foi de comitiva andando pelos trilhos do trem até a fazenda de Jango para pedir ajuda:
— Chegando lá, tinha um avião se ajeitando pra levantar voo. A gente se impressionou, nunca tinha visto um antes. O avião andou um pouquinho, parou e abriu a porta. Desceu aquela pessoa, mancando, olhou para a gente e disse para a minha mãe: “Comadre, em que posso servir?”.
Quando a mulher respondeu que precisava apenas de “um quarto de rancho”, conta o segurança, Jango perguntou se era “só isso”, chamou um funcionário seu, disse para lhe dar o que estava precisando, além de construir uma casa do jeito que Maria queria. A partir dali, Moura nunca mais deixou de ser grato ao conterrâneo.
— O homem era muito humano. Ele deu uma casa para a minha mãe e, hoje, eu guardo a casa dele aqui. O Getúlio já era mais fechadão, pelo o que contam, não dava muito para chegar perto dele — relata o segurança.
O Memorial Casa tem uma estrutura de visita parecida com a do museu de Vargas. O imóvel é visivelmente maior, mas com menos itens pessoais do ex-presidente. O espaço, que também tem painéis com a linha do tempo da história do político, prioriza a experiência da casa em si e tem a sua força nas imagens, com fotos de Jango e de sua família. Mas também estão presentes livros e documentos pertencentes a Jango, bem como roupas, malas, cachimbo e até uma câmera fotográfica Luxa 66, de uso pessoal do ex-presidente, que gostava de registrar momentos por onde passava.
Com 10 salas de exposições, sendo uma delas dedicada para mostras temporárias, na varanda de vidro, onde ficava a mesa de jantar, a casa abriga, também, a banda municipal, formada por três artistas – Ricardo Dutra Fraga, Leandro Farias e Edimar Soares – que se apresentam no local diariamente. Ou seja, a visita à história de Jango, além de ser uma importante lição de história, também é uma experiência musical, com trilha sonora de fundo durante as explicações das monitoras.
Uma das guias das visitas tem um nome que se entrelaça perfeitamente com o local onde trabalha: Brasília Rodrigues Ferreira. Ela, que é professora aposentada, está desde 2015 envolvida com os museus de São Borja e encontrou, no Memorial Casa João Goulart, a sua vocação, levando adiante a história do ex-presidente da República para quem quiser ouvi-la. Na visão dela, a experiência para os visitantes se torna mais completa por ter o Museu Getúlio Vargas a poucos metros dali:
— São Borja é privilegiada por ter dois presidentes. E as histórias dos museus se complementam, né? Getúlio Vargas foi o padrinho político de João Goulart, incentivando-o a entrar na vida política. Então, os museus serem próximos é bom para nós e para os visitantes, que dizem “agora, tenho que ir lá no Getúlio”, aí a gente responde “é logo ali”.
A espera de reconhecimento
Em comum, os profissionais que trabalham nos dois museus de São Borja esperam que os brasileiros no geral conheçam mais as instituições. Por enquanto, avaliam que tal procura é praticamente restrita a grandes admiradores dos políticos, moradores do município e quem está na cidade, que passa pela frente e acaba entrando para conhecer. Os livros de presença mostram que os são-borjenses são os mais presentes, mas é possível constatar que pessoas de Florianópolis, Rio de Janeiro, Fortaleza e Manaus, além de cidades de Argentina e Chile, estiveram nos locais recentemente.
— Fora daqui, pouca gente sabe da existência dos museus. É uma parte da história que todo mundo tem que conhecer. São Borja, afinal, teve dois presidentes da República. Não é pouca coisa — destaca a monitora Dalvanir.
E o município não deixa os moradores se esquecerem disso ou os visitantes passarem desapercebidos pela informação, que está registrada em letras garrafais no pórtico da cidade, com as fotos dos dois filhos ilustres. Junto ao título de primeiro dos Sete Povos das Missões, ser a “Terra dos Presidentes” é motivo de orgulho para os são-borjenses.
A Terra dos Presidentes
Em 2008, uma lei estadual nomeou São Borja como a Terra dos Presidentes. Mas não foram apenas Getúlio Vargas e João Goulart os são-borjenses que ocuparam o cargo de presidente da República. Em 1992, Ibsen Pinheiro (1935-2020) era deputado federal e presidente da Câmara dos Deputados, sendo responsável por conduzir o processo de impeachment de Fernando Collor de Mello. Ele chegou a assumir interinamente o cargo de chefe do Executivo em 20 de novembro de 1992.
E há quem acredite que Pedro Aramburu (1903-1970), que foi presidente, mas da Argentina, tenha nascido na cidade antes de, muito pequeno, ter sido levado pelos pais para Buenos Aires. Ele seria o quarto presidente nascido em São Borja, porém, não há registros desse episódio e, oficialmente, o local de nascimento do político foi Río Cuarto, na província de Córdoba – o que não impede a lenda de seguir viva na Fronteira Oeste.