Por Doris Couto
Diretora do Museu Julio de Castilhos
É da condição humana a produção de vestígios de sua existência, quer por meio de tudo o que utiliza para a sua sobrevivência, quer pela conservação daquilo que se converte em formas de contato com suas memórias afetivas, como as fotografias de família, as roupas do batizado dos filhos, um artefato recebido de uma pessoa a quem se quer bem, um aroma ou um sabor. Ao acessar essas peças, ativamos a lembrança de quem somos, de onde viemos. São as memórias individuais.
Quando esses vestígios são sobre uma forma de produção, como equipamentos de uma indústria, uma engenhoca utilizada por um determinado grupo, instrumentos de um ritual coletivo, documentos que revelam processos históricos, meios de transporte, vestuários, dentre outros, nos quais os grupos se reconhecem, estamos diante de memórias coletivas. Apesar de se referirem ao passado de muitas pessoas, as memórias coletivas também podem ser manipuladas, além de se dissiparem de nossos registros conforme o tempo avança.
Então, para atuar como lugar de memórias, surgem os museus, e neles são guardados os registros contidos em cada peça, que pode ser a história de vida de uma lavadeira ou uma obra de arte, tendo ambas a mesma importância.
Museus foram criados no Brasil, a partir do século 18, nos moldes do que havia na Europa. A Casa de História Natural, criada pelo Vice-Rei D. Luis de Vasconcelos e Souza, em 1784, popularmente chamada de a “Casa dos Pássaros”, foi a primeira instituição de que se tem registro. Com a chegada da corte portuguesa, em 1808, as ações voltadas ao patrimônio “civilizatório”, de caráter enciclopédico e direcionadas à educação do povo, ganham impulso, surgindo, em 1818, o Museu Real, embrião do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, consumido pelo fogo em 2018, quando se perdeu um riquíssimo acervo.
Na esteira da Era Brasileira de Museus (1870-1910), por meio do Decreto nº 589, de 30 de janeiro de 1903, Borges de Medeiros instituiu o primeiro museu público do Rio Grande do Sul, destinado às ciências naturais, à história e às artes – o Museu do Estado, que foi uma iniciativa de Julio de Castilhos, sendo rebatizado com seu nome, após sua morte, por meio do Decreto nº 1140, de 19 de julho de 1907.
Desde sua criação, passaram-se 120 anos. O museu viveu e atravessou diversas fases, como a formação inicial de suas coleções a partir de peças herdadas da 1ª Exposição Estadual do Rio Grande do Sul, tendo, inclusive, como sua primeira sede dois pavilhões dessa exposição nos Campos da Redenção, nas imediações da atual Faculdade de Engenharia da UFRGS.
Quatro anos após essa sede improvisada, mudou-se para a Casa dos Castilhos, na Rua Duque de Caxias, Centro Histórico, local que ocupa até hoje, com as dificuldades de conversão de uma residência em espaço museal, com paredes internas removidas, área edificada ampliada, casa ao lado anexada às suas dependências e a formação de um acervo importante que auxilia na compreensão da história do Estado e do Brasil. Aliás, é tão relevante que algumas de suas peças já estiveram expostas no Petit Palais, em Paris, no Palácio Itamaraty e no Supremo Tribunal Federal, em Brasília, no Sesc Pompeia, em São Paulo, e, em breve, peças vinculadas à Guerra Farroupilha comporão a exposição Memórias da Independência, no recentemente reaberto Museu do Ipiranga, também em São Paulo.
Mas, afinal, por que se guardam os vestígios do passado e para que eles servem?
Eduardo Galeano, em As Veias Abertas da América Latina, nos deu pistas quando escreveu que a “História é um profeta com o olhar para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será”.
Assim, quando se preservam e apresentam publicamente peças de coleções, busca-se provocar reflexões no público visitante, convidando-o a rememorar e reelaborar fatos que nos constituíram enquanto sociedade.
O Museu Julio, como é carinhosamente chamado, também vem refletindo sobre o seu papel e chega, nesse aniversário, reinventando-se para continuar sua trajetória de mediador de memórias. De modo simbólico, retoma o acesso pelo hall da casa histórica, totalmente restaurado, e traz para os gaúchos objetos que estão em suas lembranças mais queridas na grande exposição Aos 120 – Nossa História.
Aos 120 - Nossa História
O Museu Julio de Castilhos completa 120 anos nesta segunda-feira (30/1). Na terça (31/1), será aberta mostra com peças dos primórdios da instituição e novas aquisições, entre elas material recebido da família de Borges de Medeiros. Visitação de terças a sábados, das 10h às 17h, inclusive feriados. O museu fica na Rua Duque de Caxias, 1.205, em Porto Alegre.