
Professor associado dos departamentos de Psicologia e de Psiquiatria da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, Carl Hart esteve em Porto Alegre na noite desta segunda-feira (22) para a única palestra presencial desta temporada do Fronteiras do Pensamento. O evento aconteceu no Salão de Atos da PUCRS, e reuniu cerca de 500 pessoas.
Hart começou a sua apresentação saudando a plateia com um "boa noite" e, logo em seguida, já em inglês, pontuou que "este é todo o português que eu falo". Na sequência, o psicólogo e neurocientista revelou o tema que seria o norte da noite: "Utilizando drogas para contemplar a liberdade". E, para isso, o conferencista trouxe como ponto de partida o seu mais recente livro publicado no Brasil, Drogas para Adultos.
— Estou falando das drogas nesta noite porque elas são o meu campo de expertise, mas isso é muito maior do que as drogas. Isso trata-se de liberdade e a liberdade é aquilo que nos permite sermos humanos. As drogas são apenas as ferramentas para falarmos de liberdade — reforçou o psicólogo.
De acordo com a sua lógica, essa liberdade é fundamental e mencionada na maioria das constituições dos países, ou seja, um direito garantido. Levando isso em conta, Hart disse que as pessoas têm o direito de viver as suas vidas como elas bem entenderem, desde que isso não interfira na liberdade dos outros. Ele, então, apontou que, nos Estados Unidos, cidadãos se recusam a serem vacinados ou a usarem máscaras anticovid.
— Se você está em um espaço público, você não pode fazer isso, pois a sua liberdade começa a ter impacto na das outras pessoas — disse, garantindo que a sociedade, apesar de dizer que garante a liberdade, não se comporta desta maneira.
A mediação do encontro foi de Thiago Wendt Viola, professor da PUCRS e pesquisador do Instituto do Cérebro (Inscer). Todos no local tiveram de cumprir protocolos sanitários em função da covid-19.

Mitos e verdades
Hart, no segmento de sua fala, destacou que abordaria os mitos e as realidades relacionados às drogas, assim como sugestões de como corrigir as coisas. De acordo com ele, a posição que ele apresentou na noite desta segunda é “relativamente nova”, adquirida enquanto pesquisava para desenvolver o Drogas para Adultos, passando por uma “jornada intelectual”, descobrindo coisas que o mudaram completamente.
Ao contar um pouco de sua trajetória, o neurocientista contou que enveredou por este caminho para tentar colaborar com a sua comunidade, tentando tratar o problema das drogas, que era representada, principalmente, o crack, “que estava destruindo” os seus semelhantes. Porém, ao longo do caminho, a sua perspectiva foi mudando e, assim, ele descobriu que parte de suas crenças eram mitos, como, segundo ele, a questão de que a drogadição era inevitável e imprevisível.
— No final das contas, de 70 a 90% dos usuários de qualquer droga nunca acabam ficando viciados. Essas pessoas são responsáveis, decentes, boas, cuidam de suas famílias, pagam os seus impostos, contribuem para a comunidade e, às vezes, tornam-se presidente dos Estados Unidos — apontou, mostrando, na sequência, fotos de Barack Obama, George W. Bush e Bill Clinton.
Segundo Hart, os três políticos utilizaram drogas quando eram jovens e, segundo o conferencista, eles acabaram fazendo os seus trabalhos, aos olhos de diversas pessoas, de maneira “admirável”. Logo em seguida, o psicólogo enfatizou, mostrando fotos de Donald Trump e Joe Biden, que a dupla disse nunca ter utilizado drogas e, mesmo assim, os dois têm problemas cognitivos.
O neurocientista detalhou que, se a maioria das pessoas não fica viciada ao utilizar drogas, então, é errado dizer que elas são as culpadas por causar a dependência. Para ele, é preciso olhar além para determinar o que está acontecendo com as pessoas quando elas se tornam, de fato, viciadas. E, para ele, pesquisas colocam em evidências que alguns destes fatores são doenças mentais, doenças físicas, pessoas que têm dor, pessoas com transtornos mentais, ansiedade, esquizofrenia e depressão, deixando as pessoas mais propensas ao vício.
— Outro fator ligado à drogadição é a pobreza, seja intelectual ou econômica. Esse tipo de coisa também se relaciona à drogadição, assim com pessoas que estão sujeitas de forma crônica a expectativas não realistas. Mas isso não é sexy — reforçou.
De acordo com Hart, os pesquisadores gostam de dizer que a drogadição é uma doença cerebral, mas, segundo o psicólogo, isso se trata de um mito. O conferencista citou um artigo publicado na revista Science, 1997, escrito por Alan I. Leshner, que apontava a dependência como uma enfermidade do cérebro e, mesmo sem apresentar dados, virou referência e replicado mundialmente, criando-se esta falsa realidade relacionada às drogas.
O neurocientista apontou que não existe maneira de medir se, na verdade, as drogas causam alguma alteração nos circuitos mentais e, inclusive, destacou que a tecnologia de hoje não permite saber se alguma mudança ocorrida no cérebro é patológica ou não. Ele ainda detalhou doenças como Huntington ou Parkinson, afirmando que elas são progressivas e irreversíveis, causando atrofias em regiões específicas do cérebro.
— Quando se trata de transtornos por uso de substâncias, a maior parte das pessoas se recupera sem nenhum tratamento médico — exemplificou, destacando, em seguida, que, segundo dados científicos, em exames de imagens de usuários de metanfetaminas e de não usuários, não se encontram diferenças relevantes. E, além disso, Hart ainda destacou que os grupos tiveram os mesmos resultados cognitivos em testes.

Equívocos
De acordo com Hart, alguns pesquisadores erram ao diagnosticar as diferenças entre os cérebros como sendo patológicas como forma de “precaução”, enfatizando os efeitos negativos para obterem lucro, conquistando financiamentos para pesquisar com o objetivo de tratar estes problemas que, na visão do conferencista são “equívocos”.
E assim, na visão de Hart, ao enfatizar apenas os seus efeitos negativos, as drogas acabam sendo utilizadas como “bode expiatório” para que os governos evitem lidar com os problemas reais dos pobres na sociedade.
— A gente pode simplesmente dizer que as drogas causaram aquilo e ignorar todos os outros fatores, como o fato de as pessoas não terem empregos e de não terem educação. Também permite que as autoridades possam tornar essas pessoas alvos, sem dizer explicitamente "a gente não gosta dessas pessoas" — destacou.
Hart destacou que, nos Estados Unidos, Donald Trump adorava fazer os mexicanos de alvo, dizendo que eles os “caras do mal”, levando drogas para o país. Ao colocar o foco no Brasil, ele citou uma frase dita por Tom Jobim, “o Brasil não é para os principiantes”, e o conferencista destacou que ele próprio é um principiante, mesmo visitando o país há sete anos, mas que consegue identificar que a sociedade é complexa e que o deixa perplexo ver as pessoas que parecem com ele sendo mortas por policiais.
O conferencista ainda exemplificou o exagero nos efeitos negativos das drogas ao citar uma frase do presidente Jair Bolsonaro, na qual ele disse que os suspeitos de tráfico iriam ser mortos como baratas. Porém, Hart detalhou que estes discursos inflamados servem para fazer com que a população acredite que as drogas estão causando os danos na sociedade e, assim, a polícia possa seguir matando em nome do combate às drogas, enquanto os problemas reais seguem sendo ignorados. E as vítimas, de acordo com o psicólogo, são sempre os jovens, pobres e negros.

Efeitos positivos
Assim, de acordo com Hart, no laboratório, depois de décadas de estudos e de dar milhares de doses de drogas para as pessoas estudadas, documentando e analisando, ele chegou na conclusão de que todas as drogas têm o poder de produzir efeitos negativos e positivos, mas que o resultado não está de acordo com aquele pintado pela sociedade:
— O uso das drogas é predominantemente positivo e capaz de melhorar a vida das pessoas. Eu sei, é um tanto surpreendente.
O neurocientista ainda destacou que as políticas de proibição são motivadas, inicialmente, por racismo e por classicismo, não tendo como base a farmacologia, mostrando argumentos do início do século passado, que motivaram as leis antidrogas dos Estados Unidos. E, para Hart, estas proibições ferem os direitos às liberdades das pessoas, sendo “inconsistentes”.
— Se as pessoas, de fato, tiverem liberdade, por que que a gente se importa com o que elas colocam em seus corpos, desde que não estejam interferindo para que outras pessoas tenham a mesma liberdade? — questionou.
Para o conferencista, as autoridades deveriam regularizar o uso das drogas, tal qual foi feito com o tabaco e o álcool, o que geraria “inúmeros empregos”, bem como certificação de qualidade e controle das substâncias, vendas e regras a serem seguidas. E isso diminuiria os efeitos negativos. De acordo com Hart, os Estados norte-americanos que legalizaram a cannabis, hoje em dia, estão gerando bilhões de dólares em lucro.
— Se regularizarmos o mercado, nós podemos começar a corrigir alguns dos danos que as nossas políticas atuais estão propagando e, também, começar a fazer a reconciliação das práticas inglórias do passado com a constituição que garante aos adultos a liberdade — disse o pesquisador.
Hart também apontou que existem, sim, riscos de usar drogas, tais como dirigir um carro, mas que o caminho não é banir nenhum deles.
— Regulamentar as drogas mais procuradas estará em consistência com a promessa de liberdade. Isso diminuiria o número de pessoas que são mortas nessa guerra contra as drogas — afirmou.
O Fronteiras do Pensamento é apresentado por Braskem, com patrocínio Unimed Porto Alegre, PUCRS, B3, parceria institucional Pacto Global e promoção do Grupo RBS.