A escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum foi a terceira conferencista a participar da 15ª temporada do Fronteiras do Pensamento, que tem como tema a Era da Reconexão. Acompanhada pelo mediador, o jornalista Leandro Narloch, ela abordou, na noite desta quarta-feira (29), os fatores que ameaçam as democracias liberais.
A apresentação, que ocorreu em formato virtual, ganhou o nome de seu livro mais recente: O Crepúsculo da Democracia. Publicada em 2020, a obra que aborda tendências antidemocráticas observadas em diferentes países e o crescimento do radicalismo e do nacionalismo.
Applebaum foi vencedora do Pulitzer em 2004 pelo livro Gulag: Uma História, em que apresenta uma investigação dos campos de concentração da antiga União Soviética. Também é autora das obras Cortina de Ferro: O Esfacelamento do Leste Europeu 1944-1956, A Fome Vermelha: A Guerra de Stálin na Ucrânia.
Frágil democracia
— O que eu acredito que aconteceu ao longo dos últimos 50 anos, principalmente por causa do relativo sucesso da democracia norte-americana, por causa da prosperidade dos EUA e de sua influência no mundo, foi que começamos a ter essa ideia de que a democracia é uma bagunça, mas é inevitável, não pode acabar. O erro foi esse, imaginarmos que duraria para sempre — afirma Anne.
A historiadora reconhece que a democracia é imperfeita e sempre teve crises, mas acredita que ela está em perigo neste momento por uma série de fatores que se combinara, tais como a crise democrática nos Estados Unidos —, insuflada pelo ex-presidente Donald Trump —, a perda do interesse do país em desempenhar um papel importante no mundo, a ascensão de regimes autocrático, os avanços tecnológicos e a deterioração dos diálogos civilizados. Anne acredita que está em curso um eclipse do sistema político democrático liberal como conhecemos e de suas instituições.
— Medos com relação à saúde da democracia liberal não são novidade. Mesmo os criadores da Constituição dos Estados Unidos, no século 18, sempre souberam que a democracia era frágil. No século 20, vimos a democracia falhar muitas vezes: na Alemanha em 1930, na França e na Bélgica após invasão alemã, na Espanha após sua guerra civil e, é claro, a democracia falhou no Brasil em 1964 e em outros locais da América do Sul e da África. Mesmo assim, na minha vida adulta eu não consigo lembrar de um momento tão dramático como esse. Estamos mais perto que nunca do fim da aliança ocidental e provavelmente da ordem democrática liberal mundial como a conhecemos — afirma Anne.
Ela traz como exemplo de ameaça à democracia o que ocorreu nos EUA nos últimos cinco anos, com a eleição de Donald Trump. O líder norte-americano frequentemente se pronuncia contra as regras democráticas e seu discurso motivou uma invasão ao congresso, em Washington, em janeiro deste ano, quando manifestantes tentaram impedir que a casa reconhecesse seu próximo presidente.
— É inegável que tínhamos em Trump um presidente que não era apenas isolacionista e autoproclamado nacionalista, mas um líder que instintivamente rejeitava as regras da democracia liberal. Ele buscava sistematicamente corroer o sistema eleitoral estadunidense, ridicularizar a mídia, os tribunais e qualquer um que pudesse responsabilizá-lo por seus atos, e encorajava as pessoas a fazerem o mesmo — afirma Anne.
Assim como os EUA, os governos eleitos da Polônia e da Hungria começam a enfraquecer suas próprias instituições democráticas, com ataques à constituição e à mídia independente. Ela também traz como exemplo as eleições francesas, onde a líder da extrema-direita francesa Marine Le Pen, contrária à OTAN, não conseguiu eleger-se mas concentrou 40% dos votos. Partidos e políticos autocráticos têm ganhado espaço na Turquia, Índia, Filipinas e outros países. São mudanças que anunciam um problema profundo: o número de pessoas que acreditam ser essencial viver sob um regime democrático está caindo.
— Se isso está ocorrendo em tantos países diferentes, deve haver elementos universais. As explicações podem estar relacionadas a coisas que têm acontecido com todos nós nesse mundo superconcentrado e globalizado em que vivemos.
A conferência de Anne foi dedicada a elencar alguns dos principais fatores de influência para a instabilidade que todas as democracias estão enfrentando na atualidade. Para ela, a falta de confiança na democracia é reflexo de uma série de falhas americanas e europeias, como as guerras do Iraque e do Afeganistão, intervenções militares da Rússia, crise financeira global de 2008 e 2009, entre outros.
— A combinação destas coisas é bem poderosa, significa que os políticos, os empresários e as pessoas comuns não acreditam mais que o capitalismo ocidental seja necessariamente a forma mais justa e efetiva de evoluir uma economia, ou que a liderança ocidental necessariamente crie um mundo mais pacífico. E talvez isso signifique que a democracia ocidental e suas instituições não mais tenham a chancela que um dia já tiveram — afirma Anne.
Tecnologia e desconfiança
Para a jornalista, os rápidos avanços tecnológicos que mudaram nossas vidas nos últimos anos, como a ampla utilização dos smartphones, contribuem para um sentimento de ansiedade, insegurança e desconfiança. Ela menciona uma aura de medo que assola algumas pessoas de que um robô possa eliminar empregos fabris.
— Essa rápida transformação já está tendo um impacto na política, faz com que as instituições pareçam lentas e os acordos necessários para a democracia funcionar, como votação, campanha, formação de coalizões podem parecer desatualizados em um mundo em que tudo ocorre tão rápido. As pessoas temem as mudanças que a tecnologia traz e também temem que seus líderes políticos não saberão lidar com elas.
A tecnologia também impactou as comunicações. Enquanto instituições, que têm como princípio fundamental informar com objetividade, perdem espaço, as fake news ganham terreno, os discursos de ódio e o isolamento dos indivíduos em pequenas tribos que pensam parecido e que despendem a dialogar com quem tem visões de mundo diferentes das suas.
— A tendência de buscar narrativas reconfortantes criou clusters homogêneos online, onde as pessoas recebem notícias compartilhadas por seus amigos ideologicamente semelhantes. Esse fenômeno contribui para a intensa polarização que nós todos experimentamos e contribui para a desconfiança da política "normal", composta por políticos e instituições políticas — afirma Anne.
Ela defende ainda que, no mundo virtual, frequentemente as vozes dos mais raivosos e mais emotivos são amplificadas, pois este é o tipo de conteúdo que viraliza mais rápido e mantém as pessoas coladas às suas telas, onde serão expostas a anúncios comerciais. As redes sociais são um terreno onde as regras são criadas por empresas que querem que os indivíduos comuniquem-se de forma a atender suas necessidades comerciais, e não às necessidades das democracias. A mensagem final de Anne aos participantes do Fronteiras tem a ver com diálogo e inovação para recuperar as instituições democráticas:
— A quem preza pela democracia, quem acredita na manutenção da liberdade de expressão, do pensamento criativo e do debate aberto, quem quer preservar nossos sistemas eleitorais: devemos a nós mesmos e às nossas sociedades lidar com a profundidade desses desafios, formar novas alianças, elaborar formas inovadoras e estimulantes de fazer política e de nos comunicarmos — conclui Anne.
O Fronteiras do Pensamento é apresentado por Braskem, com patrocínio Unimed Porto Alegre, PUCRS, B3, parceria institucional Pacto Global e promoção do Grupo RBS. Para saber sobre datas, conferências e inscrições, acesse fronteiras.com.
As próximas conferências
- 13 de outubro: Niall Ferguson
- 27 de outubro: Margaret Atwood
- 10 de novembro: Yuval Noah Harari
- 24 de novembro: Carl Hart
- 08 de dezembro: Pavan Sukhdev