"O que é o luto, se não o amor que perdura?", refletiu um dos super-heróis da Marvel em WandaVision. Pareceu apropriado que o universo cinematográfico de ação e superpoderes se voltasse à dor da perda e à reflexão sobre a morte em meio à maior pandemia do século.
Mais de 17 mil pessoas perderam a vida para a covid-19 no Rio Grande do Sul nos últimos 12 meses. Considerando que cada uma dessas vidas estava ligada a pelo menos outra, são milhares de pessoas enfrentando o mesmo sentimento de perda, muitos sem direito a um último adeus, um velório ou qualquer despedida. Que diferença faz ver um herói imaginado refletir sobre o luto na tela da TV?
— Um livro, um filme, uma peça, uma música, são tramas oníricas, porta-vozes de sentimentos, que funcionam como uma casa de aluguel. Como um imóvel que habitamos e decoramos ao nosso modo, assim é ler, escutar, assistir. O que escolhemos para tanto, a forma de arte que nos convêm em cada momento, é a que nos serve, a que precisamos nessa específica ocasião para equacionar os dramas que estão doendo — defende a escritora e psicanalista Diana Corso.
Ela revelou a GZH, em texto especial para o Dia Internacional da Mulher, que tomada pelo medo de ficar viúva, durante a luta do marido contra o coronavírus, voltou-se a duas escritoras que narraram seus lutos em livros: Joan Didion, com O Ano do Pensamento Mágico, e Rosa Montero, com A Ridícula Ideia de Nunca Mais te Ver.
— Cada pessoa que atravessa este momento histórico está tendo de lidar com medos, lutos, desilusões de todo tipo, raiva, desamparo, solidão, fantasias eróticas, saudade e tantos outros sentimentos que mal consigo citar. Partilhar isso tudo com outros humanos, além dos poucos com quem podemos de fato conviver, só é realmente possível através da arte. Como brincou o (Luis Fernando) Verissimo: "Poesia numa hora dessas?". Poesia e todas as expressões da arte, sim, e mais do que nunca — declara Diana.
E ela não está só: o escritor Jeferson Tenório, cujo romance O Avesso da Pele narra a jornada de um filho tentando se conciliar com a trágica partida do pai, conta que leitores entraram em contato para compartilhar o impacto da leitura em sua compreensão das perdas que vivenciaram nos últimos meses:
— Tenho recebido mais mensagens relacionadas ao luto do que eu esperava. Elas falam sobre o quanto o livro as ajudou a compreender e a fazer sentido do que estavam sentindo. De encontrar no Pedro (protagonista do livro) a voz delas.
O luto, ele explica, é uma jornada complexa, difícil e singular, já que morremos um pouco junto daqueles que amamos. "Preciso arrancar a tua ausência do meu corpo e transformá-la em vida", narra seu protagonista ao pai ausente em O Avesso da Pele. "Eu sei que esta história pode estar apenas na minha cabeça, mas é ela que me salva", ele prossegue. Por que? "É uma história para me curar da falta daquilo que você, repentinamente, deixou de ser", conclui.
— O papel da literatura é este, o de dividir o peso de toda essa tragédia e tentar transformar toda essa tristeza em alguma coisa que nos dê sentido — reflete Tenório.
A arte, então, pode ser um guia no labirinto do luto. Não é, contudo, um simples fio de Ariadne: dos traços de Pablo Picasso em Guernica aos acordes de Eric Clapton em Tears In Heaven, os artistas têm a habilidade de combater a dor com a beleza, tornando o insuportável suportável.
— O papel da arte sempre foi cruzar os limites do possível. Superar o niilismo da vida. Dar um sentido para tudo. Encher os nossos corações de significado. Expressar o que nos é impedido. São várias as potencialidades da arte como são infinitas as possibilidades do ser humano — afirma o cantor Duca Leindecker.
Quando falamos do luto, da morte, da perda, tudo isso se torna ainda mais necessário. Compositor da canção Por Você, com versos como "Mas vou lembrar/ Que não se morre/ Quando se deixa vivo/ Seu olhar dentro de nós", o músico não tem dúvidas do papel que a arte teve em sua vida nos momentos mais difíceis:
— Sempre expressei minhas perdas através da musica, dos livros, da arte. Acho que é um ambiente que traz acolhimento e ajuda a digerir a irreversibilidade da morte. Neste momento, infelizmente, acho que mais pessoas se identificarão.
Mais do que desejável, a arte neste momento pode até ser o único alento disponível. Com os rituais fúnebres suspensos para as vítimas da covid-19, mais de 300 mil brasileiros deixaram suas famílias e amigos à deriva em meio à perda. Literalmente sozinhos, sem abraços para enfrentar a mais dura realidade, o que sobram são "migalhas do amor faltante", argumenta Diana:
— Para toda essa gente, qualquer melodia, qualquer história que sirva de sonho emprestado para elaborar o incompreensível da morte é mais do que necessário. Na falta de despedidas, para muitos têm restado objetos, miudezas que são como migalhas do amor faltante que podemos apertar no peito. Um relógio, um bibelô, uma coberta, fotos, bilhetinhos, contas pagas, qualquer rastro serve. São pequenas galerias de arte que cada um precisa montar para sobreviver neste momento de luto e solidão.