Cinco da manhã acende a luz. Era a hora de uma das medicações do meu colega de quarto. Entra o técnico em enfermagem do turno. Já o conhecíamos, simpático, sempre bem humorado. Chega compenetrado, preparando a medicação, mas visivelmente abalado. Não conseguia esconder seu mal-estar.
Eu estava no Covidário, quinto andar do hospital Moinhos de Vento. Esse é o apelido para a ala isolada. Devem ter pensado um nome melhor, mas assim é a língua, uma coisa é o que se escolhe, outra a que pega.
O remédio que me salvou do vírus, doses cavalares de corticoides, não me deixava dormir. Estava ligado, como todos os 15 dias que passei lá. Então fui puxar conversa. Eliandro também queria saber o que passou.
Era simples. Uma senhora, que estava aos seus cuidados, acabara de falecer. Ela chegou tarde demais. Quando a medicina já está impotente. Foram apenas cuidados paliativos.
Morrer ali, infelizmente, é rotina. Essa foi mais uma fatalidade do tempo que vivemos. Mas ele estava triste. Imediatamente, nós três estávamos compenetrados num sofrimento por uma pessoa de quem nem o nome sabíamos.
Sem pensar, fazíamos o que foi a marca inaugural da humanidade. Antropólogos e arqueólogos convergem que os primeiros monumentos foram os fúnebres. E o que primeiro nos tornou humanos foi a constatação da finitude e expressar a dor por quem parte com uma homenagem pública.
Essa é a face perversa da pandemia. Não podemos nos despedir com circunstância, com pesar e lamento. E isso nos desumaniza. Aquela senhora e sua família provavelmente não tiveram, pelas circunstâncias, seu momento adequado.
Nós fizemos na madrugada a nossa parte. Quando se chora por um que se foi, se chora por todos que se foram, e por nossa partida um dia. Retiramos a morte da banalidade, afinal todos morrem, e damos um acento particular que nos eleva frente ao inevitável.
Psicopatas não se comovem e nem choram a morte alheia. Esse software básico de humanidade inexiste neles. Por isso nem nos entendem. Estão no raso da vida não transcendente, do homem mercadoria ou consumidor. Não compreendem o dom da vida como um presente único, de uma trajetória singular e irrepetível.
Fiz este texto por raiva. Depois de quase morrer, de ver equipes do hospital trabalhando dobrado, exaustas, um irresponsável posta um vídeo mentiroso. Acusa o hospital de enganar a população sobre sua sobrecarga.
Meu médico, Dr. Eduardo Fernandes, parecia nos últimos dias, mais amassado do que eu. Na sua rotina, a distinção entre trabalhar e parar despareceu.
Quando saí, fui pedir desculpas por furar compromissos. Liguei para o Claudio Pimentel, que casualmente é paciente do Dr. Luiz Antônio Nasi, o superintendente do hospital. Ele me conta que durante sua consulta médica particular, foram interrompidos três vezes por pepinos que não podiam esperar. Outro que não está dormindo.
Eu vi e vivi a sobrecarga do hospital. Parte da equipe está contaminada. Um hospital não são seus leitos, são seus profissionais, que mesmo tendo que ter braços extras, nunca deixaram de me atender correta e carinhosamente. Eles parecem ter um buda extra dentro de si. Dizer que esse corpo clínico mente é de uma calhordice sem dimensão. Eles estão no front, salvando vidas e se expondo. Vai aqui meu agradecimento e meu desagravo ao bravo pessoal do Hospital Moinhos de Vento.