A entrada do Brasil no circuito das grandes convenções geeks do mundo, desde a realização da primeira ComicCon Experience (CCXP) em 2014, em São Paulo, foi celebrada por nerds dos cinco cantos do país como um caminho para se chegar mais perto de grandes ídolos e acessar novidades inéditas da cultura pop em solo tropical. Parte deles, contudo, não conseguiu chegar nem perto disso: esbarrando no fator econômico, nerds de baixa renda, moradores de regiões de periferia, têm a cadeia do consumo cultural travada quando ela deixa de caber no bolso.
Se, pelo custo dos ingressos de cinema, acompanhar a estreia dos lançamentos das franquias de super-heróis já não é fácil, participar de eventos de grande porte é quase uma missão impossível para os "nerds de quebrada" — sobretudo, se estes viverem longe do eixo Rio-São Paulo, epicentro das convenções. Ingressos meia-entrada para um único dia de CCXP, por exemplo, costumam partir dos R$ 90; em eventos menores, como o Brasil Game Show, as categorias mais baratas custam acima de R$ 70 — uma das razões que têm feito ganhar força o movimento pela democratização da cultura pop.
Heroísmo sem capa, há quem possa chamar, na capital paulista um grupo de fãs de games, quadrinhos, séries e filmes de super-heróis rebelou-se contra o caráter desigual que cerca o universo geek: distantes das grandes convenções pelas barreiras econômicas e sociais, os nerds de quebrada criaram sua própria ComicCon. Com painéis temáticos, espaço para exposição de artistas periféricos e concurso de cosplay, a primeira edição do evento batizado de PerifaCon reuniu mais de 7 mil pessoas na Fábrica de Cultura do Capão Redondo, em 2019 — e pôs luz sobre um público consumidor até então invisível.
— Quando se pensa em entretenimento dentro das favelas, é preciso abrir o leque, porque existe, sim, uma diversidade de público. A grande sacada da PerifaCon foi entender isso e perceber que a gente tinha uma demanda nerd e precisava atender ela — explica a youtuber e colunista do UOL Andreza Delgado, uma das criadoras da iniciativa. — Então, a experiência que a gente está trazendo é a de abraçar um público que é sempre negligenciado, seja por cinquenta mil fatores diferentes — completa, destacando a influência do estereótipo que circunda as existências dos moradores da periferia como portadores e consumidores de uma cultura homogênea.
Mirando não apenas em viabilizar que o universo geek chegue às favelas, a iniciativa quer que este público seja reconhecido também enquanto produtor de conteúdo. Ofertando formações acessíveis, abrindo espaço para o trabalho de artistas periféricos e construindo pontes com o mercado, a PerifaCon já contabiliza conquistas palpáveis.
— Conseguimos fechar um "trampo" com o McDonald's e colocar artistas que não estão dentro do mainstream para ilustrar a lâmina que forra a bandeja onde se põe o lanche. Foi uma coisa histórica para a gente, muito importante, por estarmos gerando oportunidades e conseguindo mostrar os talentos que temos na periferia — comenta Andreza, acrescentando: — A gente sabe que o machismo, o racismo e a questão de classe são apagadores, junto ao preconceito de achar que a quebrada não tem potências criativas. Isso não tem a ver só com a questão da invisibilidade, mas também com a autoestima desses artistas.
Brotando nas Redes
Com o planejamento para sua segunda edição presencial afetado pela pandemia de covid-19, a convenção nerd da favela "brotou" nas redes. Imersos em um cenário de agravamento das dificuldades econômicas, em meio ao qual o consumo de bens culturais ficou ainda mais restrito para a população de baixa renda, o grupo viu na internet uma maneira de continuar facilitando o acesso do seu público à cultura.
No Spotify, o PerifaCon podcast debate assuntos pertinentes ao recorte dos nerds de favela e aponta novidades do universo geek. Já no âmbito do incentivo à produção oriunda da periferia, a iniciativa promove, nesta sexta, sábado e domingo (26, 27 e 28/3), o festival online Brotando nas Redes. Voltado sobretudo à profissionalização de artistas das mais diversas periferias do país, o evento reúne painéis temáticos, ciclo de formação para quadrinistas e ilustradores e um concurso de cosplay dedicado exclusivamente à comunidade negra, com premiação (detalhes da programação podem ser conferidos no site, onde também são feitas as inscrições).
De passo em passo, os olhos por trás da criação do evento miram mais longe: no futuro de um universo geek diverso e igualmente acessível a todos.
— O nerd sofreu muito e por muito tempo por ser diferente. Então, eu acho que não combina a gente ser uma comunidade que não abraça as diferenças — opina Andreza.
Confira a programação do Brotando nas Redes:
Sexta-feira, 26/03
- 18h - Painel "Nerds da quebrada: a ascensão PerifaCon"
Em um bate-papo sobre a periferia nerd, o time PerifaCon recebe a atriz Vaneza Oliveira, da série da Netflix 3%, e fala sobre a trajetória do projeto durante o ano pandêmico de 2020. - 19h - Ciclo "Narrativas Periféricas" (parte 1)
Dando início à primeira fase do ciclo de formação para quadrinistas e ilustradores, Janaína de Luna, da Editora Mino, dá dicas de como um artista periférico deve apresentar seu trabalho para uma editora.
Sábado, 27/03
- 18h - Painel "Para além do Beco dos Artistas da PerifaCon"
Com a mediação de Andreza Delgado e Luize Tavares, os artistas Amanda Treze, Douglas Lopes, Gillian Rosa, Lya Nazura e Marília Marz falam sobre seus processos criativos e a oportunidade de, em um ano sombrio para a cultura, trabalharem para grandes marcas através da curadoria da PerifaCon. - 19h - Ciclo "Narrativas Periféricas" (parte 2)
Dando continuação ao ciclo de formação para quadrinistas e ilustradores, Janaína de Luna, da Editora Mino, explica todas as etapas presentes no processo de criação de uma HQ, bem como dicas para tornar sua produção mais barata.
Domingo, 28/03
- 18h - Ciclo "Narrativas Periféricas" (parte 3)
Na terceira fase, o ciclo de formação para quadrinistas e ilustradores traz Pedro Cobiaco, um dos maiores coloristas do Brasil, para um bate-papo sobre o processo de colorização de uma HQ completa. - 19h30min - Ciclo "Narrativas Periféricas" (parte 4)
Encerrando o ciclo de formação para quadrinistas e ilustradores, Felipe Castilho e Fábio Kabral, grandes expoentes de HQ e também escritores, prestam mentoria sobre o processo de roteirização de livros e HQs. - 21h - Bate-papo e Concurso de Cosplay
Encerrando as atividades do festival, o time PerifaCon recebe cosplayers convidados para um bate-papo sobre os bastidores desse universo e, não menos importante, o anúncio de quem leva o prêmio do Concurso de Cosplayers negros para casa.