O agora demitido secretário nacional da Cultura, Roberto Alvim, provocou polêmica ao anunciar em uma live as diretrizes do Prêmio Nacional das Artes, em um cenário e com uma ambientação que remetiam diretamente à retórica e à propaganda nazista, com direito a frases iguais às pronunciadas pelo ministro da propaganda de Hitler, Joseph Goebbels.
Diretor de teatro de carreira consolidada, Alvim afirmou em entrevista ao programa Timeline, de GaúchaZH, que foi tudo uma coincidência retórica. Ainda assim, as coincidências são muitas. Este texto enumera as possíveis simbologias contidas no vídeo:
O discurso
A fala do ex-secretário Roberto Alvim, como já foi amplamente esmiuçado na polêmica que se seguiu à divulgação, tem semelhanças inegáveis, quase palavra a palavra, com um discurso proferido pelo ministro da cultura e da propaganda alemã Joseph Goebbels, em 8 de maio de 1933.
O pronunciamento de Goebbels foi dirigido a administradores de cinema e diretores de teatro no hotel Kaiserhof, em Berlim. Embora comece dizendo que não tem intenção de "restringir a criatividade dos artistas", Goebbels logo se estende em ferozes críticas ao Expressionismo, movimento que apresentava uma visão mais subjetiva e emocional e que ele considerava arte degenerada. A fala que Alvim, ele próprio diretor de teatro, parafraseou, aponta para a nova direção da arte alemã pretendida pelos nazistas, que Goebbels chega a nomear "o Novo Objetivismo".
A música
O fundo sonoro do pronunciamento de Alvim é o prelúdio de Lohengrin, ópera romântica em três atos composta pelo artista alemão Richard Wagner (1813-1883). Wagner, obviamente, não era nazista, mas seus preceitos de uma "arte total" enraizada na grandeza mitológica do passado alemão logo foram apropriados pelos nazistas em sua ideologia de retorno a uma Alemanha gloriosa do passado.
Lohengrin tira sua inspiração da literatura medieval alemã e tem como personagem título um filho de Percival, o lendário cavaleiro e rei que teria sido companheiro de aventuras do Rei Arthur e encontrado o Santo Graal. Não apenas a obra de Wagner como um todo era reverenciada pelos nazistas como o compositor era o preferido do próprio Hitler. Em seu livro Minha Luta, a "Bíblia" do partido nazista, Hitler situa seu "despertar estético" justamente na audição de Lohengrin.
A cruz
Em cima da escrivaninha do ex-secretário de Cultura, encontra-se uma cruz de dois braços transversais. O adorno pode ser tanto uma referência à cruz missioneira, fartamente documentada na iconografia das Missões Jesuíticas no Brasil, quanto ao modelo que a inspirou, a Cruz de Caravaca, uma relíquia cristã que, de acordo com a tradição, teria aparecido por milagre na cidade de Caravaca, na Espanha, em 1232, quando a região ainda estava sob domínio muçulmano.
Supostamente, a cruz de Caravaca apareceu nas mãos de um sacerdote prisioneiro que recebera a ordem de rezar uma missa para um sultão curioso pelas práticas dos cristãos. A relíquia conteria pedaços da madeira da cruz de Cristo. Como muitos dos jesuítas que se lançaram ao trabalho missioneiro no Novo Mundo eram espanhóis, a cruz de Caravaca veio a inspirar a cruz missioneira, inclusive a que está em São Miguel (foto). Uma história que Alvim, católico devoto, certamente conhece. O "segundo braço" da cruz, menor e na parte superior, é uma versão estilizada da tabuleta presente na cruz de Jesus Cristo, identificando-o como "Rei dos Judeus".
O cenário
A composição do cenário, com a mesa, a foto de um "grande líder" ao fundo (no caso, o presidente Bolsonaro), a bandeira ao lado e o fundo com uma parede simples de compensado são elementos clássicos dos regimes que tentam vender a estrutura de governo como impessoal e eficiente. A encenação é completada pela forma como Alvim, apresenta seu discurso, olhando o tempo todo diretamente para a câmera, como a falar para o espectador olho no olho (o ministro quase não pisca o vídeo inteiro). Há uma grandiloquência calculada também na impostação da voz.
A quase ausência de gestos físicos também é um conhecido truque retórico para quem quer falar sem parecer um retórico. Exatamente como já havia prescrito o romano Quintiliano (35-95) em seu livro A Instituição da Oratória, ou Sobre a Formação do Orador, no qual sugeria que grandes oradores imitassem a técnica dos atores, mas com cuidado: "Nem todos os gestos e movimentos devem ser adotados. Ainda que o orador deva, dentro de certos limites, desempenhar ambos, deverá, no entanto, afastar-se do ator cômico, sobretudo evitando os gestos exagerados. Porque, se nisso está a arte daquele que fala, a primeira recomendação é aparentar não tê-la".