Uma das atrizes mais importantes da dramaturgia nacional, Fernanda Montenegro foi a primeira atriz contratada da antiga TV Tupi no Rio de Janeiro, em 1951. Na Globo, atuou em mais de 30 programas, entre novelas, minisséries e especiais. No teatro, foram mais de 70 peças, em 75 anos de carreira. Todas essas lembranças marcam este 16 de outubro de 2019, data que a carioca completa 90 anos.
Revendo sua brilhante carreira como uma das maiores estrelas do teatro, da televisão e do cinema no Brasil, Fernanda define os anos vividos como sendo de coragem e medo. "Vejo, hoje, que troquei de pele pela vida afora durante setenta anos. Nunca tive realmente e definitivamente o meu próprio rosto, o meu cabelo, e nem a minha postura", anota no livro Prólogo, Ato, Epílogo, lançado recentemente pela Companhia das Letras.
Veja abaixo os principais destaques da carreira da atriz:
Zazá, Bia Falcão e beijo gay em "Babilônia"
Fernanda estreou em novelas da Globo em 1981, sendo Baila Comigo, de Manoel Carlos, a primeira delas no papel de Sílvia Toledo Fernandes. Dois anos depois, ela seria lembrada por Guerra dos Sexos e uma cena marcante: no papel de Charlô, ela briga com seu primo Otávio (Paulo Autran) e uma guerra de comida durante o café da manhã na mansão em que moravam. Escrita por Silvio de Abreu, O folhetim foi um dos primeiros de Fernanda com o dramaturgo — parceria que foi estendida em outros papéis dela em novelas como Cambalacho (1986), Sassaricando (1987), A Rainha da Sucata (1990), As Filhas da Mãe (2001), e Passione (2010).
Em 1997, entre seus inúmeros papéis, protagonizou Zazá, folhetim da faixa das sete. Como a filha de Santos Dumont, ela viveu uma milionária excêntrica e extrovertida. Em um de seus voos, Zazá vê nuvens em formato de anjos e tem uma ideia: encontrar um anjo da guarda para proteger cada um de seus filhos.
Na televisão, depois dos anos 2000, ela é recordada por ter sido a perversa Bia Falcão, a vilã de Belíssima. Além de matar várias pessoas, ela fez de tudo para separar o neto Pedro (Henri Castelli) da mocinha Vitória (Cláudia Abreu). Ao contrário do esperado, Bia se deu bem no final da trama: escapou para Paris com Mateus (Cauã Reymond).
Em Babilônia (2015), ela roubou a cena logo no primeiro capítulo. Homossexual, Teresa (Fernanda) era casada com a milionária Estela (Nathalia Timberg), mãe de Beatriz (Gloria Pires), uma das protagonistas na novela. A cena causou polêmica no período, dividindo a opinião do público. Em 2017, interpretou magistralmente a mística Mercedes na novela O Outro Lado do Paraíso, de Walcyr Carrasco. Mais recentemente, fez uma participação em outra trama de Walcyr, A Dona do Pedaço, como a matriarca Dulce, avó de Maria da Paz (Juliana Paes).
Outra área de destaque, dentro da TV, foi sua participação em minisséries, como Doce de Mãe (2012). A octogenária Picucha (Fernanda Montenegro) decide morar numa casa geriátrica e acredita que o falecido marido teve uma filha fora do casamento. A atuação lhe rendeu o prêmio de Melhor Atriz no 41º Emmy Internacional. Outras produções da Globo, como Riacho Doce (1990), Incidente em Antares (1994), O Auto da Compadecida (1999) e Hoje é Dia de Maria (2005), também estão em seu currículo.
Central do Brasil e outros longas
No cinema, não há como discutir: o papel de maior expressão de Fernanda foi em Central do Brasil, quando viveu a escritora de cartas Dora no longa dirigido por Walter Salles. Após vencer o Leão de Prata de melhor atriz, no Festival de Veneza, ela concorreu ao Oscar de Melhor Atriz, que acabou nas mãos de Gwyneth Paltrow por Shakespeare Apaixonado.
Baseado na peça de Gianfrancesco Guarnieri, o filme Eles Não Usam Black-tie teve Fernanda como a sofrida Romana. A produção de 1981 venceu o Leão de Ouro de melhor filme no Festival de Veneza. Seu primeiro longa-metragem também foi marcante: A Falecida (1965), baseada em obra de Nelson Rodrigues.
Outros trabalhos importantes em longas-metragens foram Redentor (2004), em que foi dirigida por seu filho Cláudio Torres, e na produção internacional O Amor nos Tempos do Cólera (2007), de Mike Newell, como Tránsito Ariza, mãe do personagem do ator espanhol Javier Bardem.
Teatro
No teatro, Fernanda venceu festivais como protagonista das peças A Moratória (1955), de Jorge Andrade, Mary, Mary (1963), de Jean Kerr, Mirandolina (1964), de Carlo Goldoni, A Mulher de Todos Nós (1966), de Henri Becque, É... (1977), de Millôr Fernandes, As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant (1982), de Rainer Werner Fassbinder, Dona Doida (1987), de Adélia Prado, e The Flash and Crash Days (1993), de Gerald Thomas, quando atuou ao lado da filha, Fernanda Torres.
Em 2009, foi reconhecida pelo público e crítica por sua performance no monólogo Viver Sem Tempos Mortos, em que viveu a escritora, intelectual, filósofa e ativista feminista francesa Simone de Beauvoir. O papel lhe rendeu prêmio de melhor atriz na 22ª edição do Prêmio Shell de Teatro de São Paulo.
Em 1986, a atuação de Fernanda Montenegro na tragédia original do romano Sêneca por volta do ano 54 D.C. foi tão marcante que Roberto Alvim, o atual diretor da Funarte, que ofendeu a atriz nas redes sociais, admitiu ter decidido fazer teatro depois de vê-la no palco.
Fora dos palcos
Nos últimos anos, não somente a atuação de Fernanda (como o beijo gay em Belíssima), alguns dos pronunciamentos da atriz levantaram polêmica nas redes sociais. Recentemente, em entrevista à Folha, ela disse que o contexto político agora "é pior". "Antes era só político, agora é também moral, por razões de comportamento. Teatro é espaço do demônio”, falou.
Em sua biografia, lançada no fim de setembro, ela recorda posicionamentos que assumiu quando já era uma artista consolidada, como a decisão de Fernando Collor de extinguir o Ministério da Cultura. "Sempre sobra cobrança sórdida, hostil, sobre os atores", reflete.
Além disso, em entrevista à revista literária Quatro Cinco Um, ela apareceu trajada em um longo vestido preto e amarrada por cordas. Em sua frente, um monte de livros. "Quando acenderem as fogueiras, quero estar ao lado das bruxas", disse ela à publicação.
No ano passado, em entrevista a Zero Hora, ela se questionou sobre o futuro do país:
— O que é um país sem cultura? É uma fronteira. Não tem caráter. É apenas acordar, esperar o dia avançar, se não cair duro, e esperar acordar no dia seguinte. Não há perspectivas. Na minha área, não há. Na área da educação, também não. Que país nós somos? — refletiu.