Por Guilherme Mautone
Professor, doutorando em Filosofia pela UFRGS, editor da Revista Philia e docente da Casamundi Cultura
Há quatro anos, em 2015, a organização internacional Freemuse registrou na ONU quase 500 casos de ataques contra artistas e de violação às artes ao redor do mundo. Ao cotejar a estatística com a do ano anterior, apurou-se um aumento de mais de 90% nos casos atendidos pela organização que trabalha na defesa da liberdade de criação e expressão artística. Ameaças de morte, atentados, litígios judiciais, vetos governamentais, destruições patrimoniais e assassinatos tipificaram os casos em 2015.
No contexto brasileiro, somam-se outros tantos. Cito alguns de memória: a Bienal de São Paulo de 2010, o encerramento da exposição Queermuseu, em Porto Alegre, em 2017, o apagamento dos grafites na capital paulista e os vetos da prefeitura do Rio de Janeiro às performances da Casa França-Brasil, em 2018. E, no último dia 23, na Pinacoteca Aldo Locatelli, localizada no Paço dos Açorianos, na prefeitura da capital gaúcha, uma das obras de David Ceccon precisou ser removida do espaço expositivo sob justificativas institucionais de que geraria polêmica de proporções desastrosas para os espaços de arte da cidade. O artista porto-alegrense desenvolve um trabalho relevante e que suscita um questionamento sobre a identidade, a temática do gênero e a possibilidade de ficcionalização oferecida pelas linguagens artísticas desde 2018, quando esteve numa residência na França. Ceccon foi premiado com o Prêmio Aliança Francesa de Arte Contemporânea.
Por que a arte e os artistas têm estado, nos últimos anos, sob lentes de aumento? Por que se tornaram objetos de interesse político, sendo olhados com desmedida desconfiança e sendo colocados sob suspeição moral? Será algo totalmente novo? Ou será algo já conhecido no mundo da arte?
Platão, no livro X da República, prescreve a expulsão dos poetas da cidade idealizada por ele. A obra, provavelmente elaborada no século 4 a.C., apresenta dois argumentos para o desterro dos artistas. O primeiro é ontológico, ou seja, compara a natureza da arte com a natureza das outras coisas que existem e conclui que a arte se afasta invariavelmente da “verdade” por ser, naquela época, uma imitação. O outro argumento é moral: sustenta a tese de que a arte inspira nos cidadãos emoções nada republicanas que são como vícios se comparados às elevadas e racionais virtudes morais. Afinal de contas, homens sérios não se prestam às frivolidades emocionais… Ainda que Homero tenha sido grandioso e genial, ele nada pôde diante das exigências da verdade e da moralidade estabelecidas por Platão. Sobra-lhe, ao fim, os portões da cidade ideal e o desgosto do exílio.
Conhecer, pela erudição humanista, as relações litigiosas entre arte e política não é, no entanto, oferecer uma resposta às questões sugeridas. Recenseamentos eruditos são ilustrativos, mas não resolvem os impasses da nossa complexa realidade. Fornecem, no limite, respostas indiretas, meras sugestões. E, por mais que se teime num paralelismo em relação a esses dois momentos, o grego e o nosso, algo ainda nos escapa e nos mostra a diferença. Creio que pioramos.
É que Platão ousou, pelo menos, argumentar. E argumentos são necessariamente construções que pressupõem certa liberdade. Não são coisas lançadas ao vazio, não são ordens. Argumentos convencem ou não, são coerentes ou não, são válidos ou não, expressam crenças verdadeiras ou não. Mas são desde sempre coisas permeáveis ao contraditório, à famosa e saudável contra-argumentação. E, nesse sentido, exigem uma espécie muito peculiar de pacto, aquele que sela a possibilidade de um diálogo no qual partes diferentes conversam e aprendem uma com a outra. Há uma diferença gritante entre dizer “Asse o bolo a 180ºC” e dizer “Penso que a arte não deve ser censurada porque é fruto da livre expressão e promove reflexão sobre o mundo”. Uma coisa é uma ordem, a outra é um argumento. Discordar de um argumento exige um esforço singular de se fazer entender e contra-argumentar. Isso é entrar em debate. Perdoem-me a brincadeira, mas a única receita de bolo possível para uma democracia é a que prescreve a possibilidade de diálogo.
A censura à arte que vemos hoje em dia não é um argumento como o de Platão. Ela é uma ordem. E ordens são cogentes, dada sua natureza imperativa – elas exigem obediência e cumprimento. Não existem mediações em ordens, não existe diálogo, discordância, debate. São, nesse sentido, empobrecidas do ponto de vista da reflexão. Por essa razão, ordens de censura são mecanismos típicos de governos autoritários. E, voltando aos bolos, todos sabemos o que eram as receitinhas nas páginas dos jornais durante a exceção democrática no país.
A experiência da arte numa democracia nos coloca no campo do sensível e do reflexivo e oferece a quem dela se aproxima a possibilidade de falar e dialogar, de concordar ou discordar, de sentir ou não sentir. Ela inaugura para mulheres e para homens o espaço próprio de uma conversa na qual podemos tomar parte juntos, em sociedade. Hannah Arendt, pensadora alemã, falava de um inter homines esse, ou seja, de um estar entre os humanos para se referir à convivência com as pluralidades e diferenças no seio da cultura. O francês Jacques Rancière fala atualmente de um sensível partilhado, fruto de disputa política, mas sobretudo de encontro. Na censura à arte não se apaga só a arte, mas também nossa oportunidade de experimentar, conversar, concordar, discordar e estar juntos. Vai-se embora, diante da ordem de esconder do público uma obra, diante do desterro artístico, também a nossa capacidade de sustentar o que contradiz nossas crenças pessoais, nossa capacidade de mediar os conflitos pela via democrática e nosso interesse em conhecer o que difere de nós. Christian Dunker, psicanalista e professor da USP, entende que o ódio pela arte que tem crescido no Brasil está implicado num processo mais profundo de desvalorização da própria vida humana. É uma perspectiva interessante e que aponta um cenário preocupante, onde fundamentos democráticos também desvanecem rapidamente.
É importante pensar de maneira muito franca sobre tudo isso. É preciso falar disso com urgência. Ainda mais importante é pensarmos em qual contexto desejamos viver nos próximos anos. Sobre qual mundo deixaremos pro futuro. Num que viabiliza as mediações democráticas do diálogo e valoriza a vida e as diferenças? Ou num que exige somente a obediência servil e que apaga as singularidades?