Por Henrique Mann*
Músico e historiógrafo, autor de “Som do Sul” (2002), entre outros
Embora pouco se fale, os cangaceiros compuseram músicas seminais para a cultura brasileira. Mulher Rendeira, canção mundialmente famosa na voz de Vanja Orico, trilha sonora do multipremiado filme O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto, é, segundo pesquisadores como Câmara Cascudo e Frederico Bezerra Maciel, uma composição do próprio Lampião. E pode ser, ainda, uma parceria com o extraordinário Volta Seca, o mais jovem cangaceiro da história e também um dos de maior talento musical – diferentemente do que está registrado no Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), em nome de Zé do Norte (Alfredo Ricardo do Nascimento).
É possível que Zé do Norte tenha adaptado a música já existente havia várias décadas, por considerá-la de domínio público, mas Volta Seca é apontado como coautor dessa e das mais do que famosas Se Eu Soubesse e Acorda Maria Bonita, compiladas dentre oito faixas do LP de 10 polegadas chamado Cantigas de Lampeão, em 1957, pela gravadora Todamérica.
É um disco surpreendente pela riqueza de conteúdo, pelas composições, pelos arranjos do maestro Guio de Moraes e até pela gravação excelente para os padrões e tecnologia da época. Há um prólogo entre cada faixa na voz do locutor Paulo Roberto, da Rádio Nacional, que contextualiza cada canção. Nesse disco todas elas são atribuídas a Volta Seca, mas sabe-se que várias têm parcerias com cangaceiros famosos, como é o caso da célebre Mulher Rendeira, cuja versão original cantada pelo cangaceiro é muito superior à que ficou conhecida.
Segundo Volta Seca, o próprio Lampião criou a célula melódica e a estrofe inicial em homenagem à avó (“Olê! Mulé rendeira, olê mulé rendá, tu me ensina a fazer renda, que eu te ensino a namorá”) e, a partir daí, ele desenvolveu o tema. Seja como for, a canção permeia a história do cangaço. Por exemplo: foi entoada por 50 cangaceiros (e há registros de que fossem 150) pouco antes de desfecharem o épico ataque à cidade de Mossoró (RN), em 13 de junho de 1927. Ali Lampião sofreu sua mais famosa derrota, pois a cidade resistiu e repeliu o ataque. Desse histórico confronto advieram muitas consequências, como a inusitada “canonização popular” do cangaceiro Jararaca, capturado e enterrado vivo no cemitério da cidade, sendo que, anos mais tarde, o bandido invasor foi escolhido pelo povo como alvo de devoção, havendo romaria em Dia de Finados ao túmulo do “São Jararaca” até os dias atuais.
Para o bom entendimento de todos esses personagens e suas relações com a cultura brasileira, vamos começar por Volta Seca: chamava-se Antônio Alves Santos, nascido por volta de 1911 em Saco Torto, Itabaiana (SE). Deveria ter 11 ou 12 anos quando ingressou no grupo de Lampião, a convite do próprio Virgulino, que admirava o garoto por sua coragem e sua capacidade de cantar, a exemplo de outro jovem integrante do bando que chamavam de Menino de Ouro, também excelente cantor.
Ninguém sabe ao certo por que Volta Seca recebeu esse apelido, mas foi com ele que entrou para a história como o mais jovem cangaceiro e ainda como o compositor e intérprete que resgatou a música do cangaço para a cultura brasileira e influenciou muita gente, inclusive o próprio Luiz Gonzaga, o Rei do Baião. Fugido dos maus-tratos da madrasta, o jovem acercou-se do bando de Lampião e foi acolhido. Sua tarefa inicial era a de cuidar dos cavalos e fazer pequenos serviços. Mas logo, um ano depois, era já combatente de fuzil, cartucheira, punhal e “chapéu quebrado”.
Era muito bom cantor. Compunha e cantava músicas de grande riqueza melódica com letras bastante complexas, embora não se possa afirmar que sejam integralmente suas. A audição do disco Cantigas de Lampeão revela tudo isso e muito mais. É simplesmente emocionante! Está no YouTube, ouça:
Impressiona a força de versos como “meus olhos eram dois rios que não te davam passagem”, “quem não ama a cor morena, morre cego e não vê nada”, aliados à dura realidade de que Maria Bonita precisa acordar e fazer café antes do sol raiar porque a “puliça já está em pé”. Talvez nunca a ligação entre a história e a música tenha sido tão real e poética ao mesmo tempo, porque não foram canções feitas posteriormente e sim durante o período dos combates.
Para encurtar a fantástica história de Volta Seca, ele foi preso em 1932 e cumpriu 20 anos de cadeia, assim escapando da dizimação do bando de Lampião em 1938. Ele fala sobre a dureza do cárcere na composição Eu Não Pensei, Tão Criança.
Saído da Casa de Detenção da Bahia, em 1952, casou-se, gerou sete filhos e reconstituiu o cancioneiro do cangaço com forte repercussão sobre a música do Brasil e até mesmo sobre o cinema de Lima Barreto, Mazzaropi e Glauber Rocha.
A luz do rei do cangaço
É controvertida a história de Virgulino Ferreira da Silva. É certo que nasceu em Vila Bela (atual Serra Talhada, PE), na data provável de 4 de junho de 1898 e morreu em tiroteio com volantes (grupos de soldados) lideradas pelo Tenente João Bezerra e pelo Sargento Aniceto da Silva na Gruta do Angico em Poço Redondo (SE) a 28 de julho de 1938. Tiroteio de onde escapou vivo o famoso Corisco, que só seria morto quatro anos depois.
Sua família vivia em conflito por limites de terras. O pai José Ferreira foi assassinado covardemente na frente dos filhos e netos pelo policial José Lucena a mando de um dos querelantes. Isso fez com que Virgulino e dois de seus irmãos aderissem ao bando do já famoso cangaceiro Sinhô Pereira. Virgulino tornou-se seu braço direito. Passados dois anos, Pereira abandonou o cangaço e Virgulino assumiu a liderança. Sua história é bastante conhecida, seu romance com Maria Déa, chamada pela imprensa de Maria Bonita, também, assim como sua devoção ao Padre Cícero, única pessoa a quem realmente ele respeitava e por isso nunca atacou a cidade de Juazeiro. Aliás, foi lá que recebeu o “posto” de Capitão e vários fuzis Mouser 7,62 (chamados “papo amarelo”) para combater a Coluna Prestes. Mas logo descobriu que o posto não tinha nenhum valor legal e a “anistia” que lhe fora oferecida por Floro Bartolomeu (emissário de Artur Bernardes) era igualmente falsa. Assim, não combateu a Coluna, embora tenha adotado o título de “Capitão” e, com os fuzis, tenha aumentado sobremaneira sua capacidade de combate.
Tudo isso é bem conhecido e também que era capaz de terríveis crueldades, como castrar homens dos quais simplesmente não gostava da cara, surrar e estuprar mulheres... Ou sangrar alguém com uma punhalada na altura da clavícula, de cima para baixo, de modo que o sangue da vítima jorrasse a grande altura, coisa que provocava gargalhadas gerais entre os cangaceiros. Também é folclórica a origem de seu apelido, ainda da época em que era o “segundo” de Sinhô Pereira. Numa noite, disparou vários tiros rápidos com sua Winchester 44 para iluminar o chão onde um companheiro procurava o cigarro que havia deixado cair.
O que não se fala muito é que Lampião tratava com especial carinho a sua “tropa”. Tinha por hábito costurar numa máquina Singer as roupas e os enfeites de seus “soldados”. Fazia isso com prazer e às vezes varava noites costurando.
E outra de suas facetas mais incríveis era a de compositor. Ou seja, Lampião é o retrato de um Brasil profundo que mistura arte e morte, banditismo e feitos heroicos, crueldade e afetos, dedos que puxam gatilhos e costuram, vozes que ordenam mortes e cantam canções belíssimas. Lampião é o Brasil não apenas de forma simbólica, mas faz parte de sua construção em muitos sentidos.
Um santo meio torto
Entre as formas preferidas de ganhar dinheiro pelos cangaceiros estavam o sequestro e o pedido de resgate e o cerco a uma cidade para a qual exigiam a entrega de elevadas somas para que não a atacassem. Lampião fez as duas coisas em Mossoró. Sequestrou um dos moradores, homem de posses, mas decidiu que mais lucraria se a cidade lhe pagasse um tributo. Estabeleceu o valor em 400 contos (algo como R$ 20 milhões hoje). Mandou que o sequestrado escrevesse uma carta avisando da força do grupo e esta carta, dirigida ao Coronel Rodolpho Fernandes, líder local, diz que eram “150 homens bem armados e municiados à farta”.
Junto, Lampião enviou outra carta ameaçadora, cuja leitura, hoje, parece hilariante, que dizia textualmente: “Cel Rodolpho, estando eu até aqui, pretendo é dinheiro. Já foi um aviso ahi pa o sinhor. Si por acauso resolver mi mandar a importança qui nóis pédi eu envito di entrá ahi. Porém não vindo esta importança eu entrarei até ahi. Penço que, a deus querer, eu entro até ahi i vai aver muito istrago Por isso se vir o dinheiro eu não entro ahi, mais mande resposta logo. Capitão Lampião”.
Essas cartas estão no Memorial do Cangaço e da Resistência de Mossoró e mostram bem o poder de intimidação de Virgulino e seu grupo. Mas a cidade decidiu resistir. População e polícia formaram três trincheiras, uma na prefeitura, outra na estação ferroviária (que hoje abriga uma Casa de Cultura) e a terceira no Campanário da Capela São Vicente de Paula, que Lampião chamou de “Igreja da Bunda Redonda”, em razão de seu formato arquitetônico.
Lampião divertia-se mesmo com essas coisas. Tanto que, minutos antes de desfechar o ataque, ordenou que toda a sua tropa cantasse a plenos pulmões Mulher Rendeira, para depois gritar ordem de morte a todos os que estivessem na “Igreja da Bunda Redonda”. Pode parecer engraçado agora, mas na hora não deve ter tido graça nenhuma. Aliás, não teve graça nem para Lampião. A população defendeu-se com uma bravura inesperada e, depois de horas de encarniçado combate, o Capitão Virgulino teve que bater em retirada deixando para trás vários de seus homens mortos ou feridos. Um deles muito importante, líder da altura de Corisco, apelidado “Jararaca” (José Leite de Santana), que teria sido capturado ferido e enterrado ainda vivo, em caso controverso que gera polêmica até os dias atuais.
Como se tudo isso não fosse já eletrizante o suficiente e história digna de filmes, livros e estudos, aparece ainda o lado folclórico e inexplicável do profundo imaginário brasileiro. Anos depois, o túmulo do cangaceiro Jararaca passou a ser objeto de devoção e visitação em Dias de Finados. Sim! O herói escolhido pela população não foi o prefeito, que morreu em combate, ou o Cel. Rodolpho, que liderou a resistência, mas o cangaceiro que tentava invadir e pilhar a cidade. Analistas atribuem o fenômeno à morte cruel a que foi condenado. Seja lá o que queira isso dizer, é certo que os sertanejos da região referem-se a ele até hoje como São Jararaca. Seu túmulo foi recoberto de mármore e está sempre cheio de flores e oferendas.
Assim as incongruências do Brasil são o seu próprio retrato. Estão aí as histórias reais e impressionantes de Lampião, Volta Seca e Jararaca para prová-lo.
* Colaboraram Leandra Vargas e Juarez Fonseca