Por Tailor Diniz
Escritor e roteirista. Autor de "A Superfície da Sombra" (2017), filme de Paulo Nascimento protagonizado por Leonardo Machado (1976-2018)
É difícil escrever sobre um amigo que parte. Ainda mais quando parte tão cedo, no auge da carreira, tocando adiante tantos projetos. Nessas horas, o silêncio sempre nos parece mais adequado. E mais cômodo. Escrever, nesse caso, é enfrentar uma negativa cabal, a que joga o ficcionista de volta para o lado real da vida e o confronta com o seu poder sempre lembrado, aquele que lhe permite, bem ou mal, forjar uma explicação lógica para os desencontros de um enredo a ser inventado.
Nessas horas, dizer algo com alguma coerência foge ao alcance da escrita. O absurdo põe por terra e devasta toda e qualquer prerrogativa do autor para tornar verossímil a sua narrativa. É o momento da perplexidade, em que são truncadas as possíveis ações para conter o rumo inexorável de uma história cujo desfecho queremos mudar. E só resta fazer como fizemos, o Nelson e eu, ao nos abraçarmos, perplexos e derrotados, à entrada do Centro Municipal de Cultura, quando apenas nos olhamos e dissemos, como se tivéssemos ensaiado a fala antes:
– Não há o que dizer.
Conheci o Leonardo Machado da mesma forma que praticamente a maioria dos leitores o conheceu, nas telas, atuando, fazendo o que sempre quis fazer, com alegria, competência e paixão. Anos depois, quis o destino que nos encontrássemos em função de um trabalho conjunto, que acabava por aproximar nossas duas cachaças, o cinema e a literatura. Fomos apresentados pelo Paulo Nascimento, diretor de vários trabalhos realizados por ele no cinema. Foi no Festival de Gramado, em 2012, numa noite fria, em que posamos para fotos, bebemos vinho e fizemos planos. Poderia descrever cena por cena aquela noite inesquecível, quando, a certa altura, o Paulo me puxou pelo braço para o outro lado da mesa e a Ane, sempre sorridente e feliz, nos fotografou.
Mas não é isso o que agora vem ao caso. O que vem ao caso é que, desde aquela noite de muitos planos sobre livros, cinema e personagens – o que vem ao caso é que, a partir daquele instante, o Leonardo passou a dar à obra que nos unia, e que passava a ser dele também, uma atenção e um respeito profissional que eu nem sabia se era merecedora.
O tempo passou, fomos nos encontrando, ora por intermédio do Paulo, bem mais próximo dele do que eu, ora pessoalmente, numa relação que nunca ficou abaixo do carinho e da mútua admiração. Há poucos meses, ainda passamos alguns dias juntos, em viagem de trabalho, e ele sempre manteve a fibra, sem perder a alegria e o entusiasmo com o presente e o planejamento da vida, preocupado também em blindar os amigos de um problema que, sabíamos, lhe abalava a intimidade.
Esse era o Leo que fui conhecendo aos poucos, com o passar dos anos. Homem elegante em todos os sentidos, atencioso e amigo. O Leo que, antes de partir, confortou a todos, em especial mãe, que – difícil de acreditar – foi quem nos consolou, quando, na verdade, o contrário seria o mais lógico: os amigos confortarem a mãe que acaba de perder um filho, aos 42 anos de idade, cheio de planos e projetos de trabalho.
O Leo planejou tudo, por meio de seu fiel amigo e parceiro Paulo. Da roupa à playlist a ser tocada na sua despedida, para poupar os amigos da desorientação que, por certo, os atingiria tão logo soubessem da sua partida. Queria que tudo desse certo, até o último momento fez questão de agir como se aquela passagem parecesse um mero capítulo natural da vida. A verdade, no entanto, é que nem mesmo a grandeza do gesto de tentar nos acalmar teve força suficiente para nos deixar calmos. Essa recomendação vai ser impossível de ser cumprida. Seríamos desonestos se não admitíssemos que estamos profundamente tristes e abalados.
Lembro, então, do que escreveu a Giovana quando soube da notícia: "Chorei vida, porque viveu na minha memória uma sequência de cenas bonitas". Nossa memória será assim a partir de agora, cheia de cenas bonitas, como aquelas que o amigo Márcio Papel projetou no telão, em uma homenagem singela e quase de improviso, no tablado da Sala Álvaro Moreira, onde o Leo quis estar presente, e esteve!, para se despedir dos amigos.
* Nelson é Nelson Diniz, ator; Ane é Ane Siderman, mulher de Leonardo Machado; Giovana é Giovana Echeverria, protagonista de "A Superfície da Sombra".